pedro henrique vilela oliveira
tcc apresentado ao curso de arquitetura e urbanismo da escola de arquitetura da universidade federal de minas gerais como requisito à obtenção do título de arquiteto e urbanista.
orientadora: priscila musa
belo horizonte
ea - ufmg
2024
A produção arquitetônica pentecostal adiciona distintas camadas à malha cultural intrincada e complexa das cidades brasileiras em fricções nem sempre pacíficas. O trabalho investiga a expansão urbana e as tipologias construtivas ocupadas por tal grupo em Belo Horizonte, capital previamente monopolizada por outros atores sociais, para compreender as variáveis necessárias para a implantação de seu projeto religioso nas metrópoles. Os costumes, edifícios e visuais pentecostais destoam do cânone acadêmico e de referências cristãs, e exibem outras maneiras de mediar o sagrado e o profano. Seus ritos, baseados na experiência corporal direta com o Espírito dialogam com o espaço construído numa dinâmica em que tempo e corpo são reconfigurados com o auxílio da espiritualidade aliada a tecnologias de comunicação em massa.
AD Assembléia de Deus
CCB Congregação Cristã no Brasil
CNE Cruzada Nacional de Evangelização
IBL Igreja Batista da Lagoinha
IEQ Igreja do Evangelho Quadrangular
IIGD Igreja Internacional da Graça de Deus
IPDA Igreja Pentecostal Deus é Amor
IURD Igreja Universal do Reino de Deus
A inserção dos símbolos e produção estética dos Pentecostais, grupo politicamente e culturalmente relevante nas últimas décadas, adicionam outras camadas à malha cultural intrincada e complexa do país em fricções nem sempre pacíficas. O trabalho busca compreender a produção espacial desse grupo nas cidades previamente monopolizadas por outros atores sociais. Os costumes, construções e visuais pentecostais destoam de outras referências cristãs ou do cânone acadêmico, e exibem outras maneiras de mediar o sagrado e o profano.
A pesquisa é motivada pelo pluralismo produzido com tanta força e criatividade nos ambientes pentecostais. Nasci no seio de uma típica família mineira, estruturada nas leis do catolicismo e nas condições materiais que a zona rural da. Na última década testemunhei diversos casos de conversão religiosa entre familiares para igrejas de matriz pentecostal e, mesmo que eu não faça mais parte de nenhuma religião, a diversidade de vivências aglutinadas por essas denominações causaram espanto para a minha formação católica. Familiares da zona rural se assentaram muito bem nas leis da Congregação Cristã no Brasil, e outros, de realidade urbana violenta, também encontraram esperança e afeto na Wesleyana para se libertarem, ou pelo menos a promessa de libertação, do tráfico de drogas e da prisão. Foram contatos importantes para deslocar meu ponto de vista normativo e perceber que o pentecostalismo latino 2000 não é tão casto e hermético quanto faz parecer.
O movimento pentecostal é formado por centenas de denominações, que variam de tamanho, centralização, administração, expressão de fé, abertura política e costumes. Dentre essa variedade, algumas foram selecionadas para análise levando em consideração a relevância para a história, produção arquitetônica, emprego de tecnologias multimídia, visibilidade e poder político: Congregação Cristã no Brasil, Assembléia de Deus, Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja Pentecostal Deus é Amor, Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus e as locais Igreja Batista da Lagoinha e Igreja Forte O Ninho Das Águias.
As denominações fornecem exemplos para análise da produção arquitetônica das igrejas, compreendendo a construção dos edifícios sagrados como uma relação entre corpo x espaço x tempo. Assim, relaciono as tipologias encontradas à questão corporal, pedra fundamental da concepção de espaço sagrado para o segmento.
O trabalho media dimensões internas da religião, por meio de histórias, vídeos e trechos de cultos; externas, por meio de teóricos e pesquisadores do tema, e transcendental, por meio da participação em ritos pentecostais e de referências a trechos da Bíblia, músicas gospel e outras fontes culturais. O título do trabalho advém de uma dessas rasuras bíblicas no corpo do texto: “Vòs também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual e sacerdòcio santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo” (Bíblia, 1 Pe, 2, 5). Já “Magia pentecostal” provoca a reflexão sobre os limites entre sagrado e profano, divino e mundano, benigno e maligno, tensionados pela arquitetura e prática ritualística apresentados no texto.
Curral Del Rei foi o sítio escolhido como sacrifício para a invocação do sonho republicano de modernização mineira: Belo Horizonte. A nova capital foi parida como um projeto político da oligarquia como aposta para a modernização econômica e industrialização de um estado rural com economia decadente. A ideologia racional que direciona a construção de Belo Horizonte destoa da realidade paroquial e acanhada de Curral, e o ambicioso projeto precisa lidar com o empecilho de não contar com uma tabula rasa para implantar a modernidade artificial. Para Starling (2002), a promessa metropolitana gera uma cidade onde o tempo parece precisar sempre ser reformado e refeito para dar conta das incongruências de um projeto forasteiro num país cronicamente instável. Símbolo maior disso é a avenida do Contorno, uma “membrana protetora do ambiente urbano feita para impor barreiras à participação e ao uso desse ambiente por largas camadas da população” (Starling, 2002). Assim, Belo Horizonte interioriza em seu inconsciente histórico uma dor da ausência de um passado e tradição relacionável típica das cidades do país. Por isso conservam a instabilidade como marca identitária dos moradores, que eternamente buscam pela leveza graciosa da promessa moderna em detrimento da indeterminação do cenário urbano.
Contudo, a modernização mineira não preconizava total rompimento com tradições coloniais. Pereira (2019) aponta que as elites buscaram aliar traços de modernização, entendidos como necessários para desenvolvimento econômico, com valores políticos e ideológicos da sociedade escravista convenientes para os patrocinadores da empreitada. O plano cartesiano haussmanniano garante a segregação física e espacial de uma gente que ergue mas não pode ocupar o institucionalíssimo espaço destinado aos homens de poder. Exemplo disso é a movimentação pública para extinguir ocupações de operários e racializados em pontos da malha, como na Favela do Alto da Estação, Favela da Barroca e no Largo do Rosário. O lado inverso da Avenida do Contorno precisou abrigar, além do contingente humano, uma expectativa gerada pelo sonho da modernidade,
“onde tudo haveria de ser sempre novo e onde os homens parecem condenar-se à dialética da destruição e da contínua renovação. Um processo tão rotineiro de transformação, degeneração e mudança do espaço urbano, que, no limite, impede à cidade acumular memória” (Starling, 2002, p.72).
De acordo com Starling (2002), não é estranho que em pouco tempo, imagens fantasmagóricas ocupem a natural vocação de preservar e transmitir a identidade que as linhas retas de Aarão Reis tentam abafar. Entidades, crenças e experiências de fé são profundamente ligados aos espaços públicos da cidade como, provavelmente, uma reação ao plano urbano que nega o passado em busca de uma promessa moderna e afasta os núcleos indesejados para as bordas.
A atmosfera sobrenatural que paira sobre a geografia acidentada de Minas Gerais advém de um povo que majoritariamente viveu, ou é descendente de quem viveu, a expressão religiosa chamada de Catolicismo Popular, conjunto de práticas, ritos e símbolos do meio rural brasileiro. Segundo Zaluar (1973), é uma religião voltada para a vida na terra que difere do catolicismo urbano por não apresentar formulação relativamente coerente numa obra letrada ou na hierarquia da instituição apostólica romana. A distância geográfica das cidades mineiras e a inexistência de infraestruturas de divulgação eficientes contribuíram para esta expressão cristã que acata não as leis papais, mas aos indivíduos detentores de poderes mágicos a fim de obter salvação individual de problemas do momento, como pobreza, doença e outros infortúnios.
O santo era mediador entre as pessoas e símbolo dos laços que as uniam, ao proporcionar união entre os homens para as festas. Os rituais tornavam-se então performances dos conflitos das normas sociais, grupos, a ordem moral e os interesses pessoais não verbalizados entre estratos do microcosmo rural, em que a ambiguidade e os significados implícitos dos símbolos cristãos permitem livre apropriação pelas diversas categorias e grupos, sem serem exclusivos de nenhum deles. Assim, as obrigações com os santos eram dentro das tradições do catolicismo popular, obrigações com seus semelhantes (Zaluar, 1973).
Logo, a principal tecnologia ofertada pelo Catolicismo Popular é uma estratificação social que sustentava os padrões de vida tradicionais do interior, centradas na figura de um líder mediador entre o povo e a imagem do santo. Analisada por Zaluar (1973), a ordem social tinha como base o paternalismo assumido pelo patrão/dono de terra/fazendeiros e eram retribuídas pelo respeito demonstrado pelas classes inferiores. Enquanto o patrão dispunha de meios políticos para implementar suas decisões, aos lavradores restavam meios ritualísticos por meio de laços de compadrio e das obrigações sociais das festas sagradas.
Os ritos e símbolos também são momentos em que são permitidos inversão ou atenuação de regras sociais, dando vazão as ambiguidades, inconsistências e conflitos da vida diária (Zaluar, 1973). Religiões fazem usos de símbolos que carregam em si certa ambiguidade, que pode ser manipulada com fins de legitimar o status da própria religião. Assim, os símbolos são testemunhas não apenas do consenso das sociedades mas de suas contradições. Pe. Francisco (1897), descreve as festas religiosas realizadas no povoado de Curral del Rei:
As festas principaes da freguezia eram: - a da Padroeira a 15 de agosto; a do Divino, a de Santa Efigenia, a de S. Sebastião, a de Santo Antonio, a do Reinado do Rosario, e as solemnidades da Semana Santa. (...) O Reinado fazia-se regularmente na primeira dominga de outubro, dia este de grande gala para os pretos, por ser o de sua festa predilecta. Neste dia ostentavam-se pelas ruas garbosos, e alegremente dançando ao som cadencioso de seus tambores, de seus adufes e de suas sambucas, produzindo fortes e vibrantes pandorgas – tudo em honra e louvor da Senhora do Rosario, como diziam elles. Na capella resava-se ou cantava-se a missa; e à tarde, a ceremonia da deposição dos reis velhos com seu estado maior, e a eleição dos novos, que deveriam exercer no anno futuro, etc., etc. As festas de S. Sebastião e de Santo Antonio nem sempre se faziam, e às vezes eram feitas com alguma irregularidade de tempo. As do Divino e de S. Efigenia eram feitas em tempo próprio; ultimamente, porem, por força das circumstancias, que dificultavam frequentes vindas de música e de padres, passaram a celebrar-se unidas à da Padroeira, que sempre se fez no dia 15 de agosto. (Dias, 1987, p. 49 apud Pereira, 2019, p. 83)
No fim do século XIX, o processo de romanização católica realizou reformas eclesiais em busca de centralização e ortodoxia institucional frente ao sincretismo popular e seu caráter mágico e emocional (Aleixo, 2014). O êxodo rural e a maior capilaridade da informação resultaram em menor influência das paróquias nos núcleos urbanos e no processo de secularização e individualização desenvolvida nas cidades. Houve a passagem de um sistema de reciprocidade regido pelas noções de dívida e obrigação moral que fornece um meio de avaliação do prestígio social dos indivíduos, para um outro em que o acúmulo de bens torna-se o elemento básico nas transações sociais. No contexto urbano, a patronagem não desaparece, mas assume novo caráter. O sujeito dessa relação passa a ser políticos, juízes, delegados e outras autoridades, e o espaço da ação uma terra em que o protesto e desespero coletivo resultante das crises assumirá a forma de uma tendência messiânica que chamarei de Pentecostalismo.
O sucesso desse movimento no espaço urbano é resultado da informalidade e transitoriedade que permitem um acompanhamento e adaptação às transformações inerentes à sociedade contemporânea (Machado, 1997). Tal postura determina também a configuração espacial sem limites ou fronteiras, definidas momentaneamente, e o tipo de comunicação estabelecida. A dinâmica da cidade exige sempre que construa-se novas formas de comunicação, não só no campo da técnica, mas também na criação de sinais e símbolos urbanos (Loro, 2006). Nessa dinâmica, as pessoas podem escolher os componentes de sua fé, às vezes até contraditórios. Nasce um código visual-ritualístico definido pela liberdade de escolha formado por um pluralismo de significados.
Segundo Mafra (2011), numa sociedade urbana assentada em estruturas hierárquicas tradicionais, marcadas pelo paternalismo e estratificação, a onda pentecostal fornece uma gramática de reconhecimento das pessoas e de suas posições na sociedade, a despeito das classes econômicas superiores para apostar em alteridades detentoras da capacidade de transmitir os desejos do Espírito Santo. A estratégia é muito bem-vinda para grupos marginalizados, que formam maioria no público das igrejas evangélicas no país, e que sempre foram presentes na história das denominações aqui estudadas. Diversos personagens centrais para o estabelecimento da religião foram mulheres e homens racializados, como Irmã Bernarda e Pastor Anselmo Silvestre.
De acordo com o Datafolha/2020, as mulheres correspondem a 58% dos evangélicos (podendo atingir 69% no caso das neopentecostais) e pretos e pardos formam 59%, quase o dobro de brancos (30%). Se no altar é comum vermos figuras masculinas e alvas como Edir Macedo ou Silas Malafaia, o corpo das igrejas permite outra leitura do fenômeno pentecostal no Brasil.
Em síntese, o que temos é uma total reorganização da interação e comunicação na metrópole, pois para os pentecostais o acesso à alteridade deve contar, total ou parcialmente, com a mediação do Espírito Santo. Isto provoca uma enorme valorização das relações intraclasse, na intensificação das relações e comunicações nos espaços congregacionais, que, em geral, estão na vizinhança e são abertos e receptivos ao Espírito Santo. Ao mesmo tempo, abandona-se o investimento nas interações pontuais interclasse, típicas do favor e relações de clientela patrão/empregado, pois, muito claramente, os habitantes da Zona Sul tendem a rejeitar essa nova religiosidade. (Mafra, 2011, p. 150)
Os primeiros sinais do Movimento Pentecostal aparecem no final do século XIX, em pequenas comunidades religiosas no Tennessee e na Carolina do Norte que pregavam uma renovação doutrinária do protestantismo tradicional. Aleixo (2014) aponta como exemplo o movimento reavivalista Latter Rain Movement, fruto da cisão de batistas e metodistas, que enfatizava o dom de línguas (glossolalia), a operação de milagres e a segunda vinda de Cristo (milenismo). Porém, o marco histórico pentecostal ocorreu em uma igreja metodista negra em Los Angeles, liderada por William Joseph Seymour, conhecido como “o profeta negro”. O templo não era o primeiro a sediar rituais envolvendo possessões e transes espirituais, mas anteciparam a intensa relação entre os Pentecostais e a mídia por serem pioneiros ao contar com ampla cobertura jornalística acerca do “batismo no Espírito Santo” (Campos, 2005).
A manifestação do Espírito Santo é um fenômeno narrado no segundo capítulo do Atos dos Apóstolos que revela o cumprimento da promessa de Cristo de enviar um Consolador (Bíblia, Jo, 14, 16-17). Após a ascensão de Jesus aos céus, os apóstolos e outros seguidores da então marginalizada doutrina se reuniam em um espaço fechado quando foram tomados pelo Espírito Santo. Tal experiência teria fornecido capacidade para melhor compreensão das escrituras e força para a evangelização, materializada na então adquirida capacidade de falar em qualquer língua necessária. O esforço das Igrejas Pentecostais é reproduzir tal acontecimento em seus altares, o que rapidamente convocaria pessoas atraídas por uma experiência espiritual imediata, que rompe com a hegemonia cristã da institucionalização, a rotinização e a burocratização do carisma estabelecidos, como exemplo, pela Igreja Católica.
A glossolalia, conhecida popularmente no Brasil como reteté ou manto, também manifesta-se em situações emocionais diversas, funcionando como uma linguagem corporal e sonora para expressão dos sentimentos. Isso aconteceu durante o sepultamento da minha bisavó, crente da Congregação Cristã no Brasil, que morreu aos 102 anos num pequeno agrupamento na zona rural de Muriaé. Tocados pela perda de uma centenária, as irmãs de véu e os irmãos de terno utilizaram dessa gramática sagrada para expressar enlutamento, com demonstrações acaloradas de entes mais próximos se lançando sobre o caixão e lamentando em línguas não identificadas.
Esse é o estereótipo básico dos pentecostais no imaginário coletivo brasileiro, mas, é uma generalização irreal. Aleixo (2019) identifica um reforço coletivo nas últimas décadas para a construção de uma identidade evangélica generalizante e aglutinadora, fomentada por eventos como a Marcha para Jesus. Apesar disso, os pentecostais não são uma massa amorfa e dividem-se em denominações diversas com objetivos teológicos e práticas diferenciadas pela época de criação, contato com outros países e interpretação da Palavra.
A pluralidade da fé nacional expressa-se numa igual pluralidade de espaços de fé: o último censo (IBGE, 2024) aponta a existência de 579,7 mil templos pelo país. A quantificação é uma peleja árdua, já que muitos dos templos são irregulares e efêmeros, principalmente os de vertente pentecostal. Os evangélicos distribuem-se desigualmente pelas regiões brasileiras, sendo o Sudeste, com 32%, um dos mais importantes pólos da expansão evangélica, de acordo com o Datafolha (2020). O aumento é proporcional à redução de católicos no país, fruto de uma mudança no cenário urbano do país, em que os novos moradores da cidade advindos do campo instalam-se em bairros novos e distantes, sem a presença imediata de igrejas católicas. Assim, a transição do catolicismo para outras formas de cristianismo torna-se tendência no século XX e acelera nas três décadas finais (Spyer, 2020).
Mariano (2004) afirma que o fenômeno de transição religiosa tem como fatores determinantes os processos de individualização e emergência do mundo urbano-industrial. O processo de urbanização que os novos moradores das cidades foram submetidos envolvia o encaixe existencial com uma realidade coletiva nunca experienciada antes onde o que “se inscreve e se projeta não é apenas uma ordem distante, uma globalidade social, um modo de produção, um código geral, é também um tempo, ou vários tempos, ritmos” (Lefèbvre, 1999, p. 160 apud Loro, 2006, p. 113).
A agudização das crises social e econômica, o aumento do desemprego, da violência e da criminalidade, a liberdade e o pluralismo religiosos, a abertura política e a rápida difusão dos meios de comunicação de massa experienciados pelos brasileiros favorecem o rompimento dos laços primários dos habitantes com as identidades tradicionais. O indivíduo urbano encontra-se em uma anomia social de desamparo, e deseja construir “ilhas de certeza” para firmarem suas identidades pessoais. Para D’epinay (1970) a função do protestantismo latino seria de apaziguar as demandas individuais dos que vivem na marginalidade da cidade, mantendo a estrutura oligárquica paternalista e tirana da América Latina.
Tais aflições frequentemente encontram alento no Pentecostalismo, vertente evangélica que instrumentaliza a informalidade e transitoriedade para aglutinar fiéis. Machado (1997) conceitua a Territorialidade Pentecostal, partindo do conceito geográfico de território. O território é uma forma espacial de comportamento social em que os indivíduos ou grupos estabelecem relações de afeto, influência e controle sobre determinado espaço. O território é uma construção subjetiva e temporal, que pode produzir um lugar. Segundo a autora, o pentecostalismo estabelece uma ocupação territorial de grande mobilidade e descentralizada, desenvolvendo uma estratégia espacial essencialmente informal e transitória, que gera um outro tipo de territorialidade.
De acordo com Mafra (2011), a mediação pentecostal implica numa ruptura das relações espaciais desses fiéis com outros grupos da cidade e intensifica as ligações locais e do ciclo social imediato, uma vez que o espaço urbano é encarado como uma ameaça profana a campanha de santidade erguida pelos evangélicos. As redes de apoio intra evangélicas são fundamentais para compreensão do fenômeno narrado. No Brasil, as famílias que adotam tal fé melhoram suas condições econômicas e seu reconhecimento na sociedade (Higgins, 2022). As igrejas auxiliam os migrantes das áreas rurais para as urbanas com aconselhamento, informações sobre emprego, pequenos empréstimos e outras formas de ajuda. Além do clima de solidariedade, os rígidos padrões de comportamento pessoal servem como credencial de capacidade de trabalho e honestidade. Lima (2007) sustenta que o público pentecostal percebe a organização da igreja e dos seus líderes e extraem da igreja o que os beneficia; em particular, a motivação para prosperar. Tal estratégia é vital para a população com rendimentos baixos e não inserida no mercado formal de trabalho, sem participação em movimentos sindicais ou representações trabalhistas (Machado, 1997).
Aqueles reconhecidos como religiosos têm maior facilidade de encontrar trabalho remunerado, principalmente entre demografias racializadas e femininas. Viver o evangelho atenua o efeito negativo de ser negro sobre a probabilidade de ter emprego remunerado, segundo Higgins (2022). Já as mulheres desenvolvem novas perspectivas para além do papel doméstico, ao se envolverem em atividades extra familiares da vida apostólica. A rede feminina também é fonte de apoio emocional mútuo frente aos desafios de manter uma família e fortalecimento da autoestima e autonomia.
A fé evangélica também oferece maior mobilidade social para os fiéis, pois para ser um dirigente não é necessário uma formação teórica, mas a habilidade empírica de evangelizar. Edir Macedo, controverso líder religioso, critica o “cristianismo de muita teoria e pouca prática; muita teologia, pouco poder; muitos argumentos, pouca manifestação; muitas palavras, pouca fé” (Mariano, 2004). Os pastores geralmente compartilham a mesma origem dos fiéis, e transmitem o discurso de maneira simples, informal e pouco elaborada para uma massa com baixa instrução e letramento. A figura do pastor representa a possibilidade de ascensão social por meio da fé, trajeto impensável em outros grupos religiosos de maior rigidez (Machado, 1997).
Isso é possível graças à estrutura organizacional dessas denominações, que usam a maleabilidade para potencializar sua capilaridade. As Igrejas Pentecostais não dependem das determinações de instâncias institucionais, como a Igreja Católica e suas instâncias superiores, para tomar decisões. A estrutura pentecostal é composta por (I) organismos supralocais, com alcance regional ou nacional que rege e orienta as (II) igrejas locais, sedes do poder em determinada região, como templos-sede ou igrejas-mãe. Cada igreja local dirige uma variedade de (III) núcleos de fiéis.
A nucleação é a linha de frente da prática evangelizadora. É uma prática informal originária da Assembleia de Deus em que um crente ou pastor cria em sua casa, garagem, salões alugados ou em qualquer outro lugar, uma célula para estudo da Bíblia. Com o aumento de fiéis, os pontos de pregação deslocam-se para salões alugados, em que filiais e congregações são formadas. Quando uma congregação reúne um número expressivo de membros ativos torna-se uma igreja-mãe. Os pontos de pregação podem tornar-se ainda uma nova denominação, caso não seja incorporado ao templo-sede local. Nesse caso, as pequenas células tornam-se independentes pela crescente adesão de adeptos, criando uma nova estrutura hierárquica.
Assim, a reprodução pentecostal acontece num processo contínuo de descentralização, apesar de apresentar rígida estratificação. Podem se estruturar em diferentes estratégias de gestão: enquanto a Assembleia de Deus, maior segmento evangélico do país, se constitui de uma rede de mais de 140 agrupamentos nacionais de igrejas autônomas, a Universal aposta em uma organização centralizada, atraindo 1,8 milhões de fiéis (Spyer, 2020). Os dados sobre a fé dos brasileiros recolhidos no recenseamento nacional de 2022 não foram divulgados até a produção desse trabalho, mas o levantamento de 2010 fornece uma perspectiva de como se organizam entre as denominações, estados e cidades. Logo, na falta de informações recentes, utilizo os últimos números disponíveis.
A nucleação foi fundamental para a fixação da Assembleia de Deus em Belo Horizonte. O comerciante boliviano naturalizado colombiano Clímaco Bueno Aza, convertido em Belém, e enviado por Gunnar Vingren para a capital do Estado de Minas Gerais, organizou os primeiros cultos em sua residência, uma casa alugada na Rua Peçanha, no Bairro Carlos Prates. Segundo o site da AD-BH, as primeiras famílias que se converteram ao Evangelho foram batizadas no Córrego do Leitão que, à época, não era poluído.
Em 15 de janeiro de 1929, a igreja adquiriu um imóvel na Rua Uberlândia, nº 620 e inaugurou um pequeno templo sede da Igreja no estado, após ocuparem um salão alugado na Rua Tremedal, esquina com Rua Padre Eustáquio. A expansão assembleiana em solo belo-horizontino é reflexo da ação de dois missionários suecos, Nils Kastberg e Algot Svensson, que solidificaram a igreja nos meios institucionais e espirituais. Em 1944, a Igreja adquiriu um terreno na Rua São Paulo, e em 1950, iniciou a construção do templo que ainda hoje abriga a sede da Igreja. A construção da sede localizada no centro da cidade é posterior a expansão da denominação para pontos distantes da cidade, como Venda Nova, que já abrigava núcleos de fiéis.
Nas décadas seguintes, a Assembleia ganhou novos territórios pela descentralização estabelecida pelo Pr. Anselmo Silvestre e sua esposa Irmã Bernarda Silvestre, por meio da compra de terrenos para a construção de templos, tanto na capital como no interior. Enquanto isso, Bernarda liderou um grupo de irmãos e irmãs que prestavam assistência e forneciam alimentação aos irmãos que trabalhavam voluntariamente na construção. O empreendimento vingou, e no fim de sua gestão, a Assembleia pulou de 1.500 congregados para 70.000 apenas na região metropolitana.
As práticas de expansão tomam contornos multimídia com os esforços da Igreja Quadrangular de adentrar o mercado religioso “com seus métodos arrojados, forjados precisamente no berço dos modernos meios de comunicação de massa, a Califórnia do entre-guerras” (Freston, 1994, p.72). Ricardo Mariano (2010) avalia que as organizações religiosas desenvolveram uma gestão de caráter mercadológico na década de 1950, com a centralização administrativa e financeira, a profissionalização eclesiástica,
a fixação de metas de produtividade para pastores e bispos, a minimização e o abandono de práticas ascéticas e sectárias, a adaptação dos serviços mágico-religiosos aos interesses materiais e ideais dos fiéis e virtuais adeptos (Mariano, 2003, p. 111-112).
A visibilidade pentecostal foi conquistada com sacrifício e dedicação sobre um país até então de maioria católica, e foi desestimulada por repressões policiais, pressões políticas e discriminação religiosa estatais que ameaçavam sua ação (Aleixo, 2014). Em 1953, a Igreja do Evangelho Quadrangular promove uma campanha proselitista chamada de Cruzada Nacional de Evangelização (CNE), liderada pelos missionários norte-americanos Harold Williams e Raymond Boatright (Rosa, 1978) com bastante repercussão. A CNE é sinal da formação de um novo modelo eclesial de caráter gerencial acompanhada de incorporação de práticas de gestão empresarial, marketing institucional, difusão do evangelismo de massa, uso de veículos midiáticos e promoção de eventos em espaços públicos, como praças, cinemas, ginásios, estádios de futebol e tendas de lona (Freston 1994). O trabalho sob as tendas prosseguiu e, em cada novo lugar onde eram estabelecidas, davam origem a um núcleo que se constituía em uma nova igreja.
Segundo o site da Quadrangular, a igreja foi fundada em 1° de janeiro de 1923, com a inauguração de sua sede internacional Angelus Temple, em Los Angeles, Califórnia, a partir das ações evangelizadoras da pastora-celebridade-diva pop Aimée Semple McPherson. Diferente do glamour e beleza simbolizados pela figura da Irmã Aimée, a IEQ rompe em solo belo-horizontino de maneira modesta e simples: em uma edificação alugada na Rua João da Cunha no Bairro Barroca, em um galpão caiado de uma antiga marcenaria. O empreendimento fazia parte do “Método de Crescimento da Igreja Primitiva”: cada adepto desempenha o papel de “pequeno missionário” em seu cotidiano. Após treinamento sobre preceitos teológicos e rituais básicos como evangelismo, cura divina, libertação de demônios, corinhos, salvação de almas e batismo no Espírito Santo, a casa do fiel deveria tornar-se uma “mini-igreja”, e sua atuação deveria permear a vida social, evangelizando as pessoas em sua bolha social. “Havia a meta de alcançar 20 participantes regulares, com o objetivo de crescimento gradual para que cada mini-igreja se transformasse numa nova congregação. Para evitar constrangimentos e promover um clima amistoso e solidário, proibiu-se a arrecadação de dízimos e ofertas financeiras” (Aleixo, 2019).
A estratégia vingou e o crescimento da Quadrangular veio acompanhado de mudanças inspiradas no evangelismo de massa e no televangelismo dos EUA, por estar submissa à rede estadunidense. Mais recursos são direcionados à mídia impressa, radiofônica, televisiva e virtual, com mensagens de caráter institucional e empreendedor, o que impulsiona seu processo de catedralização. Os novos discursos opõem-se à visão católica, acusados de vincular pobreza e privação a recompensas espirituais, enquanto dinheiro e prosperidade correspondem à dimensão pecaminosa, carnal e diabólica. As igrejas do período acompanham as dinâmicas da sociedade de consumo, e observa-se uma inversão simbólica que passa a vincular a miséria ao diabo e a prosperidade ao divino. “Além do passado mais liberal, dentre as igrejas mais antigas a Quadrangular seria a denominação que estaria aderindo mais rapidamente ao modelo estético, musical e comportamental capitaneado pelas neopentecostais” (Mariano, 2010, p. 209 apud Aleixo, 2019, p. 23).
Os esforços de evangelização multimídia atingem as redes de rádio e TV. Com o sucesso de comunicação, conseguem estabelecer empreendimentos volumosos, como é o caso da Rede Record, comprada por por 45 milhões de dólares por Edir Macedo, também dono da TV Mulher, 62 emissoras de rádio no Brasil, Gráfica Universal, Editora Universal Produções, Ediminas S/A (que edita o jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte), gravadora Line Records, Uni Line (empresa de processamento de dados), Construtora Unitec, Uni Corretora (seguradora), Frame (produtora de vídeos), New Tour (agência de viagens), entre outras (Mariano, 2004).
A construção de um espaço virtual pentecostal é essencial para cativar os ouvintes a visitarem o espaço analógico do templo, onde poderão efetivamente participar da pregação e experimentar a conversão. Segundo Sá (2014), em sua leitura de Marc Augé, a aceleração do tempo não permite que a vida ocorra nos espaços físicos que ocupamos, que se transformam em meios que possibilitam a interação no espaço virtual. A espacialização da fé atingiu dimensões especiais no caso da Universal, pois seus fiéis têm tendência de contribuir com uma taxa maior de dízimo, aumentando a arrecadação da rede. Isso acontece pois são incentivados a doar não uma taxa fixa baseada no salário do indivíduo, mas de acordo com o que deseja receber de volta.
A concepção de uma rede publicitária religiosa imbrica a esfera espiritual com a monetária. Segundo Preciado (2023), o capitalismo deixou de ser um simples sistema de governo entre outros ou como uma ideologia política para ser a “pura realidade”, o que Mark Fisher chamava de “realismo capitalista”. Assim, sistematicamente totaliza as esferas do trabalho, educação, reprodução sexual, regulação dos afetos e toda a gama de sentidos humanos. Nessa configuração, o marketing torna-se a ferramenta encarregada de gerir os processos de mal estar capitalistas e de reduzir a resistência política. Os chamados sujeitos transformam-se em identidades naturalizadas que o capitalismo cibernético utiliza como big data e fontes de informação numa batalha midiática. Compreendendo os crentes como um grupo identitário, as redes de publicidade contribuem para a construção de um consumidor digital que gerará lucro ao se expor ao algoritmo.
O sistema denunciado por Preciado (2023) deu conta de construir nos últimos séculos uma estética definida como um regime de saturação sensorial e cognitiva de captura total do tempo e de ocupação expansiva do espaço. O consumo do espírito não é mais exclusividade do templo, mas matéria distribuída pelo feed das redes sociais, em aplicativos de mensagens e, na falta de mãos ou olhos desocupados, é audível por serviços de streaming. Por estética, Preciado entende “a articulação entre a organização da vida, a estrutura da percepção e a configuração de uma experiência sensível compartilhada”. Assim, a estética é o modo específico de habitar o mundo sensível, social e político regulado por ideologias e sentidos do grupo, que formam coletivamente uma tecnologia de produção de consciência humana (Preciado, 2023).
Como exemplo de vínculo comunitário na percepção da experiência, o autor descreve a relação estética do sujeito medieval, dependente de uma inscrição corporal no espaço da catedral que permitia o acesso da alma do crente medieval para o universo teológico por meio da luz dos vitrais. Logicamente, a ligação entre do pentecostal trabalhador latino, geralmente racializado, com seus espaços de fé difere da experiência de um camponês católico europeu. Os edifícios das congregações pentecostais exercem a sagrada função de sobrepor a existência profana mundana corpórea terrestre dos crentes com a presença do transcendental Espírito. O espaço sagrado sedia a mediação entre céu e terra, experiência sensível que se espacializa por meio de gestos, objetos, palavras e sons revestidos da sacralidade no momento da celebração. Assim, torna-se essencial compreender a essência da experiência religiosa como estruturante do espaço (Gil Filho, 2001). Rojas (2011) analisa que a ambivalência de duas esferas exprime-se em templos cuja arquitetura tem componentes do sagrado e do profano.
Portanto, explorar as dimensões transcendentais para além da tipologia e reconhecer a prática como estruturante do espaço é basilar para compreender o espaço sagrado (Gil Filho, 2008), que existe na sensibilidade individual. O transcendental experienciado nos templos constrói uma “realidade subjetiva intrínseca à lógica religiosa, que apesar de diferente, se apresenta como base imprescindível do real – mesmo que esta seja apenas verdade para quem a vive: o fiel, o devoto.” (Gil Filho, 2012, p. 13). A experiência com o divino se expressa em espacialidades, formada por gestos, objetos, palavras, ornamentos e sons durante o culto.
A experiência espacial pentecostal é calcada menos no ambiente construído e mais na performance. Utilizo a definição de performance de Martins (2021), caracterizada como comportamentos estéticos marcados ou acentuados, que por meio da repetição são transmutados, transmitidos e transformados. São encenados no tempo e espaço, de forma simultânea e efêmera, passíveis de serem decodificados por aqueles indivíduos envolvidos no meio. Assim, o templo pentecostal é formado não pelas dimensões físicas, mas por situações sagradas que dependem apenas da união entre pessoas com a mesma crença (Freitas, et al, 2021). Essa percepção coletiva permite que uma denominação funcione em qualquer ambiente, como garagens, galpões, estacionamentos, transporte público e calçadas, auxiliando na capilaridade do pentecostalismo. Porém, o espaço tátil tradicional é reconhecido como especial para viver o encontro sobrenatural pela conexão possível entre o sagrado e o profano nos espaços religiosos. “Pois onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Bíblia, Mt, 18, 20).
O edifício adquire o caráter sagrado durante o tempo de um culto por meio da expressão corpórea dos presentes: no canto, dança, fala, choro, riso e comunhão, as pedras vivas edificam a casa espiritual (Bíblia, 1 Pe, 2, 5). E para isso, o corpo do cristão exige uma santificação diária para atingir a pureza necessária para receber Deus, como um vaso recebe o fluido. “Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós, a quem vós tem de Deus e que você não é seu?” (Bíblia, 1 Cor 6, 19).
O perigo maior, dado que está implícita a ideia da presença do transcendente no interior da pessoa, é da impossibilidade da recomposição das distinções humano e divino no fim do rito. Ao contrário dos rituais do candomblé, que insiste na familiarização do cavalo com o Orixá, no transe com o Espírito Santo não haverá um acréscimo de qualidade do humano no rito de incorporação, daí a imagem do vaso que é, momentaneamente, preenchido pelo Espírito Santo. (Mafra, 2011, p. 147-148)
A performance dos poderes do Espírito Santo representa uma capacidade elevada de acesso espiritual para aqueles capazes de estabelecer essa ponte. Algumas vezes, inclusive, é traço determinante para atingir posições privilegiadas no ritual, como se aqueles banhados pelo Espírito fossem membros de uma casta santa escolhida por Deus para ministrar seus ensinamentos, servindo como inspiração e guia para todo o corpo da igreja. Mafra (2011) afirma que a escolha do Pentecostalismo pela mediação do Espírito Santo é apenas uma alternativa entre outras escolhidas por outros tipos de Cristianismo, mas que oferece grande plasticidade à capacidade de comunicação, e consequentemente no seu discurso e prática.
A autora elenca três tipos de relação entre fiel e espírito encontradas no pentecostalismo brasileiro:
• O Espírito Santo se comunica com o interlocutor num contato pontual;
• O Espírito Santo se adensa ao corpo humano com a evolução da fé, e funciona como marcador social positivo, tornando o fiel referência para outros que almejam a salvação;
• O Espírito Santo se manifesta pelo transe, geralmente experienciado na coletividade do ritual. É uma atividade altamente desejada por reafirmar a aliança entre Deus e seu povo.
As experiências materializam-se em corpos que rodam, pulam, dançam, em bocas que cantam, gritam e murmuram línguas não terrenas, capazes de serem transmitidas ou compartilhadas, manifestação de fé ímpar no cenário cristão. Para Eliade (1992) esse rito busca atualizar um evento sagrado do passado mítico, e assim interrompe momentaneamente o tempo linear mundano. Para o corpo fiel, o tempo sagrado é circular, reversível e recuperável, restabelecido fora da linearidade pela linguagem da performance. Ao participar das celebrações, o cristão torna-se contemporâneo ao acontecimento mítico, e momentaneamente vive no tempo das histórias bíblicas, dividindo o pão, bebendo o sangue de Cristo ou recebendo os dons do Espírito Santo.
As produções de Leda Maria Martins e Mircea Eliade encontram-se na perspectiva do tempo como uma ontologia, expresso em certos contextos religiosos a despeito de ferramentas normativas de comunicação e registro como o discurso e a narrativa. No transe gerado pela experiência paranormal, o corpo que se movimenta no espaço estabelece “uma noção cósmica, ontológica, teórica e também rotineira da apreensão e da compreensão temporais” (Martins, 2021, p. 13). O transe não é linear.
Antes de uma cronologia, o tempo é uma ontologia, uma paisagem habitada pelas infâncias do corpo, uma andança anterior à progressão, um modo de predispor os seres no cosmos. O tempo inaugura os seres no próprio tempo e os inscreve em suas rítmicas cinesias. (Martins, 2021, p. 13)
O espaço sagrado fundamenta uma temporalidade distinta por sediar a performance, em que Espaço e Tempo são igualmente heterogêneos e descontínuos (Eliade, 1992). O tempo não linear só pode ser acessado no espaço em que o corpo em movimento ocupa.
Um tempo ontologicamente experimentado como movimentos contíguos e simultâneos de retroação, prospecção e reversibilidades, dilatação, expansão e contenção, contração e descontração, sincronia de instâncias compostas de presente, passado e futuro. (Martins, 2021, p. 42)
Variadas linhas temporais podem coexistir em ambientes pentecostais pois o cristianismo inovou a experiência temporal ao afirmar a historicidade de Jesus Cristo. O abandono da ideia de tempo sagrado cíclico já havia ocorrido no Judaísmo, que construiu um tempo sagrado irreversível com começo e fim. Mas, no caso cristão, pela apresentação sequencial da Bíblia dos eventos canônicos, a linha torna-se suscetível à santificação (Eliade, 1992). Assim, o tempo experienciado nos ritos cristãos não é mais atemporalmente mítico, mas algo que ocorreu no passado, e por isso a própria História revela-se como uma nova dimensão da presença de Deus.
Porém, o cristianismo experienciado em solo brasileiro é marcado pela ação e pensamentos dos povos submetidos à essa religião. O pentecostalismo, sendo destino comum de dissidentes do catolicismo e de matrizes africanas, é composto por referências diversas dos antecedentes desses fiéis. Esse trabalho procura questionar quais são os resultados espaciais da fricção entre várias realidades postas em oposição, mas frequentemente tensionadas até o ponto de mútua influência. É uma relação complexa, já que a incorporação de práticas alheias ao pentecostalismo é negada, vetada e condenada dentro das denominações. Em visitas a celebrações, testemunhei mensagens hostis à fiéis, líderes religiosos e divindades africanas e católicas, ao mesmo tempo em que me vi cercado por homens e mulheres pardos, pretos e brancos com experiência pregressa nesses meios. Por meio do reteté, os crentes pentecostais conseguem furar a malha temporal linear do cristianismo, possibilitando diálogos com outras ontologias e filosofias.
Se os dois autores concordam que a performance religiosa relaciona tempo e espaço num exercício corporal, Preciado (2023), em sua leitura foucaultiana, entende o espaço como determinante desse corpo usuário. Nas igrejas pentecostais, seus salões, garagens, galpões e palácios funcionam também como dispositivos de captura que codificam o fiel no espaço e determinam seu movimento, induzindo disciplinas e usos específicos do corpo. Não há apenas um tipo de espaço pentecostal codificador, pois a mesma diversidade de conexão com o sagrado também é encontrada na produção arquitetônica, que pretende atingir resultados diversos com a consolidação de elementos construídos. O ponto de partida é quase sempre um edifício profano, comum e ordinário, que adquire o caráter sagrado para o crente durante a aparição do Espírito Santo, o que determina como essenciais, para Rojas (2011) que quatro condições espaciais fossem estabelecidas para os templos pentecostais primitivos:
• Capacidade para todos os presentes;
• Objetivo comum de comungar com Jesus;
• União de todos os presentes no mesmo perímetro;
• Suficientemente discreto.
São variáveis subvertidas ou abandonadas de acordo com as condições específicas do ambiente histórico, social e territorial particular, proporcionando certas condições de singularidade na arquitetura observada. Freitas (2022) mapeou pelo menos três tipologias, aqui rebatizadas como Tabernáculo Fixo/Móvel, Galpão Ungido e Palácio YHWH. Também apresento outra estratégia espacial recente e extremamente popular no meio pentecostal, chamada Parede Preta.
Durante os 40 anos pedagógicos em que foi líder político e religioso de um povo livre e nômade no deserto, Moisés construiu um Tabernáculo planejado e vistoriado por Deus. No projeto, Deus/Javé/YHWH detalha as dimensões, estrutura, ambientes, orientação solar, revestimentos e mobiliário de um templo móvel (Bíblia, Êx). O Tabernáculo é uma tenda composta por camadas de cortinas divididas em três espaços: o pátio externo, o santuário e o Santo dos Santos. O último, acessado apenas pelo Sumo Sacerdote uma vez ao ano, era abrigo da Arca da Aliança, cujo propiciatório de ouro separava o exterior da presença do próprio Deus.
A construção sobrepunha uma estrutura desmontável e simples, baseada em estacas e tecidos, com o requinte das dez cortinas de linho fino torcido e pele de cabra; panos azuis, púrpuras, e carmesins; pratos, colheres, cobertas, tigelas, castiçais, propiciatório de ouro puro e a presença do próprio Deus. A construção de um espaço que combina elementos da ocasião com elementos intrincados é encontrada na tipologia arquitetônica pentecostal mais numerosa no Brasil, que aqui chamarei de Tabernáculo fixo e Tabernáculo móvel. Em fixos reúno exemplos de templos pequenos, que ocupam espaços especializados para a função e apresentam traços arquitetônicos de certa estabilidade, comuns a denominações bem estabelecidas. Em móveis estão aqueles sobrepostos a edifícios profanos, com alto índice de reformas e reocupações, revestidas momentaneamente por símbolos de fé.
NÃO FILMAR ATENDIMENTOS DA OBRA DA PIEDADE
Em hipótese alguma, podemos filmar ou fotografar os atendimentos e publicar nas redes sociais, inclusive nos casos de entrega de instrumentos musicais. Encontramos no Evangelho, escrito em Mat.6,2 "Quando pois deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. "
USO DA INTERNET PELA CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL
A Congregação Cristã no Brasil não se serve de ferramentas e ou aplicativos da Internet para qualquer tipo de propaganda da instituição. Em nossas comunicações, utilizamos o site oficial para apresentar à irmandade circulares, avisos, documentos e pontos de doutrina - assuntos de interesse comum, que são assinados digitalmente por intermédio de QRCode pelo Conselho dos Anciães Mais Antigos do Brasil.
A CONGREGAÇÃO CRISTÃ não faz qualquer tipo de propaganda de sua doutrina, nem se utiliza de qualquer meio de divulgação pública de seus princípios de fé. Quem tiver interesse espiritual de conhecer sua doutrina deverá frequentar seus cultos em qualquer de suas igrejas.
As primeiras missões pentecostais no Brasil foram feitas pelos italianos Luigi Francescon, em São Paulo e Paraná, formando a Congregação Cristã no Brasil (CCB) e em 1910, com missionários suecos no Pará, dando origem à Assembleia de Deus (AD) em 1914 (Araújo, 2016).
Foi revelado para dois jovens suecos, Daniel Berg e Gunnar Vingren, que suas pulsões evangelizadoras deveriam encontrar uma terra chamada Pará. Movidos pelo Espírito Santo, chegaram em Belém em 1910, sem provisões, contatos ou conhecimento da língua portuguesa. Para sobreviver uniram-se à Igreja Batista local, que encontrava-se em um período instável. A dupla começa a lucrar com a colportagem, como os assembleianos chamam o ato de distribuir publicações de conteúdo religioso. De acordo com o apanhado histórico de Araujo (2016), Berg espalhou durante os primeiros três anos 2 mil bíblias, 4 mil Novos Testamentos e 6 mil unidades dos Evangelhos. Assim, conquistam relevância na cena religiosa de Belém e, em 8 de junho de 1911, a irmã Celina de Albuquerque torna-se a primeira brasileira a receber o batismo no Espírito Santo durante um encontro do grupo que futuramente se chamaria de Missão da Fé Apostólica, e posteriormente Assembleia de Deus. Os Missionários pregavam o evangelho dando ênfase a curas divinas, batismo no Espírito Santo e falar em línguas.
Já no Sudeste, as ondas de imigrantes estrangeiros em busca de melhores condições de vida atraem o italiano Luigi Francescon para São Paulo. Originalmente prostestante presbiteriano, Francescon cria a Congregação Cristã no Brasil, nova religião que adquire adeptos nos bairros operários, como Brás, Barra Funda e Bom Retiro (Monteiro, 2010). Foi o responsável por semear na cidade a espiritualidade carismática que teve contato durante sua passagem pelos Estados Unidos.
Tais agrupamentos eram marcados pela convivência multicultural entre os moradores, principalmente dentro da religião: os cultos, os hinos e a pregação eram realizados em italiano. Esse detalhe revela a principal característica da denominação, marcada pelo isolamento em relação ao mundo exterior, crendo na separação total entre Estado e religião e com esforços para manter-se apolítica até os dias de hoje.
Desde o início, São Paulo se constituiu num pólo difusor da nova doutrina, que seguiu, a princípio, pelos estados da região Sudeste. Minas Gerais abriga o segundo maior número de templos da CCB com 7184 templos, segundo levantamento da própria instituição, atrás apenas de seu estado de origem.
Diferente da maioria das práticas pentecostais, a CCB não realiza cultos ao ar livre, praças e locais públicos, proíbem campanhas de evangelização, assim como a impressão de folhetos ou distribuição de mídia eletrônica. Por não possuírem nenhum tipo de publicação ou material evangelístico direcionado ao público externo, a construção dos templos é a forma mais consistente de expansão. Os edifícios da Congregação são facilmente reconhecidos por sua padronização espacial sóbria, ainda bastante influenciados pelo ascetismo das igrejas protestantes tradicionais, que de acordo com Rubem Alves (1979) buscavam se opor à dimensão contemplativa e visual da experiência católica.
São edifícios retangulares, de linhas simples, grandes janelas verticais e com frontão destacado que anuncia o título CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL em letras grandes. Algumas unidades diferenciam-se por características particulares por demandas do espaço (como igrejas flutuantes na Floresta Amazônica) porém todas são externamente revestidas em cinza. O interior é obrigatoriamente despido de adornos, com paredes claras e bem iluminado (Monteiro, 2010). Os bancos são dispostos em fileiras com corredor central direcionando para o púlpito, composto por uma tribuna, uma bíblia e duas cadeiras encostadas ao fundo. O único sinal gráfico é a frase EM NOME DO SENHOR JESUS em destaque sobre o púlpito e na frente da tribuna.
De acordo com Monteiro (2010), a gestão da CCB é simples e centralizada. Conta com uma rede de ofertas voluntárias e anônimas denominadas “coletas”, que diferenciam-se do dízimo pela não obrigatoriedade. Não comercializam bens ou objetos sagrados, como óleos ou águas ungidas, apenas bíblias, hinários e véus (vestuário obrigatório para as mulheres). A renda recolhida visa sustentar a ação filantrópica “Obra da Piedade”, viagens missionárias e a construção de novos templos.
Em vez de retornarem para a própria comunidade, as ofertas são centralizadas regionalmente. Tal organização possibilita a construção de novos templos em pontos da cidade sem recursos próprios para a edificação de uma unidade. Ou seja, os fiéis de bairros já dotados de templo viabilizam a compra de terreno e a construção de outros edifícios em diferentes localidades, principalmente em territórios de baixa renda. A padronização arquitetônica facilita a produção em cadeia desse esquema, além de democratizar a experiência religiosa entre classes sociais e gerar o sentimento de pertencimento: todos os templos pertencem a todos os fiéis, pois sua existência depende da colaboração e participação do coletivo.
A CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL E SEUS BENS PATRIMONIAIS Considerando-se não ser nosso objetivo o acúmulo de riquezas temporais, reiteramos à irmandade nosso princípio firmado desde o início, constante no Estatuto: Art. 14. Em caso de cisma ou separação, o patrimônio permanecerá com a Congregação Cristã no Brasil, não assistindo qualquer direito ao grupo que dela se separar. Art. 15. Não mais havendo irmandade numa localidade ou por conveniência administrativa, a critério da reunião prevista no art. 32 deste Estatuto, a pessoa jurídica e seu patrimônio serão incorporados à Congregação Cristã no Brasil indicada nos atos de incorporação. Art. 16. Dar-se-á a extinção da Congregação Cristã no Brasil quando for comprovado que não mais existam fiéis que sigam a mesma Fé e Doutrina, em todo Território Nacional. Dissolvida a Congregação Cristã no Brasil, far-se-á a sua liquidação de conformidade com as leis em vigor, destinando-se o seu patrimônio a asilos, orfanatos, escolas e hospitais públicos.
A maior característica da CCB é a tentativa de construir uma rede analógica alheia às influências mundanas, o que baseia seu espaço sagrado e seus ritos calcados na norma de costumes.
“Para um crente, essa igreja faz parte de um espaço diferente da rua onde ela se encontra. A porta que se abre para o interior da igreja significa, de fato, uma solução de continuidade. O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos de ser, profano e religioso”. (Eliade, 1992, p. 28)
Não são permitidas palmas, mulheres e homens sentam-se em lados opostos, não seguem calendário litúrgico e são orientados a não participarem de festividades e até mesmo comemorações religiosas como Natal e Páscoa. Maior flexibilidade aparece apenas na espontaneidade dos cultos, que não apresentam estrutura preestabelecida, guiados por algum membro do ministério que se sinta capacitado pelo Espírito Santo.
Do seio de uma denominação com teologia e espaço marcados pela unidade e padronização, os ritos e performances ali existentes podem apenas seguir diretriz parecida. A corporeidade existente na CCB é experienciada coletivamente. Nos bancos da CCB, só há uma diferença entre os fiéis: o gênero. Homens do lado esquerdo, mulheres de véu no lado direito, e no caso privilegiado da unidade central belo-horizontina, localizada no Cachoeirinha, são separados na nave por uma orquestra afinada. Estão ali pois o culto é inteiramente entrecortado por hinos determinados pelo público com base em um livro encadernado em couro preto chamado Hinos de Louvores e Súplicas a Deus, hinário oficial da congregação. São músicas numeradas, com estrutura semelhante, estilo quase parnasiano, cantadas em uníssono sobre uma base orquestral.
A condenação de manifestações espirituais calorosas é tão basilar para essa denominação que o tema apareceu na fala de abertura de um dos cultos de domingo na CCB em que participei. Entre as músicas, houveram orações, testemunhos sobre o poder da evangelização, como a conversão de dois feiticeiros, e discursos sobre a importância de um louvor comportado, sutil, elegante e modesto, claramente reflexo do distanciamento estabelecido pela CCB em relação a outras pentecostais (classificação recusada por eles). Nesse caso, o corpo é tensionado e tocado pela sensação de integrar uma massa normativa, exemplarmente pura, amalgamada pela voz sobreposta aos instrumentos, todos reunidos sob um teto igualmente pasteurizado.
O espaço, assim como todas as produções estéticas da Congregação, baseia-se numa visão segregacionista de mundo terreno e vida espiritual. Para ser digno de experimentar a santificação, é necessário a concepção de um estado de anomia materializado. Essa doutrina é compartilhada por todas as denominações pentecostais, mas a Congregação Cristã no Brasil mantém-se distintamente fiel aos ideais de isolamento, que mantém-se como uma igreja que pouco utilizou das ferramentas da industrialização e neoliberalização para potencializar sua existência.
LEI Nº 6902, DE 6 DE JULHO DE 1995
O Povo do Município de Belo Horizonte, por seus representantes, decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Fica dispensada a exigência de Alvará de Localização e Funcionamento para templos religiosos.
PLANO DIRETOR
Art. 49º Parágrafo único. Ficam isentas do pagamento da ODC as instituições religiosas, bem como os equipamentos de assistência social a elas vinculados.
A pentecosticidade política toma formas incontornáveis durante a Assembléia Constituinte de 1988, em que diversas lideranças se mobilizaram para indicar candidatos oficiais para garantir um número relevante de irmãos de fé na confecção do documento (Rocha, 2016). O discurso conservador foi mantido, mas agora rompia as barreiras sectárias para garantir poderes e mobilidade para as igrejas com diversos candidatos eleitos. A condenação do mundo continua, mas como motor de mudança política em vez da simples ausência. A Batalha Espiritual tão comum no imaginário carismático agora seria travada do Plano Piloto, e por consequência, de todos os outros espaços anteriormente negados à presença pentecostal. Durante culto em 2014, a pastora Ana Paula Valadão profetiza algo já em curso:
“Nós ousadamente declaramos: queremos, iremos, sim, para aquela área mais temida pelas trevas, para que a nossa invasão venha mudar a história. Nós estamos indo, Satanás, para a política brasileira. E as portas do inferno não prevalecerão sobre a igreja do Senhor”.
Sob a pretensão de pentecostalizar o mundo secular, os pentecostais deixaram-se secularizar, e nesse momento é possível visualizar a abertura da concepção do espaço sagrado para tendências e ferramentas oferecidas pelo mercado imobiliário, indústria da construção civil e do marketing de produtos, capazes de produzir uma nova variação de Tabernáculos. Estabelecendo diálogos irremediáveis com a pós-modernidade fluida descrita por Harvey (2008), a produção cultural e formação de juízos estéticos dos ambientes pentecostais das últimas décadas derivam de um sistema organizado de produção e consumo mediado por novas divisões do trabalho e marketing sofisticado. O novo cenário econômico gerou frutos tão diversos quanto as doutrinas, mas com características em comum aqui reunidas pelo nome Tabernáculo móvel.
Freitas (2022) caracteriza essas construções como pequenos edifícios com finalidade original distinta do culto, como garagens, salas comerciais, cinemas, residências e tendas. É fruto da necessidade de um espaço rápido, barato e capaz de abrigar os fiéis num contexto urbano saturado. Diferente do Tabernáculo do deserto, que revelava o sagrado gradativamente em seu interior, nessa tipologia inexiste fronteira entre sagrado e profano.
A Igreja Pentecostal Deus é Amor, localizada na Rua Guaicurus, 337, ocupa uma construção de alvenaria neste endereço. Fundada em 3 de junho de 1962 pelo missionário David Martins Miranda, a IPDA nasceu a partir de uma revelação. Após orar durante a madrugada, David ouviu a voz de Deus, comissionando-o para a realização de uma grande obra (Araujo, 2016). Defendem o batismo por imersão ministrado em adultos que fazem a profissão pública de fé, o casamento exclusivo entre evangélicos, a expulsão de demônios e a manifestação dos dons espirituais. Assim como outras denominações da segunda fase pentecostal, tinha forte presença no rádio e ênfase teológica na cura divina, influenciada pelo movimento de cura propagado nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial. No Brasil, coincidiu com a acelerada urbanização nacional e o intenso êxodo rural para as regiões Sul e Sudeste nos anos 1950, tendo como principais protagonistas Igreja do Evangelho Quadrangular e Igreja Pentecostal o Brasil para Cristo, além da Igreja Pentecostal Deus é Amor (Aleixo, 2014).
No lote da Guaicurus, o espaço sagrado adere-se ao existente até os limites máximos disponíveis, aqui interrompidos pelos dois edifícios que o cercam. Por isso, apresenta profundidade superior à largura. É retangular, ausente de elementos ou espaços intermediários, abrigando um único ambiente. Nave central e bancos definem uma hierarquia espacial já comum aos cristianismos (Rojas, 2011) em que o púlpito é o centro absoluto do ambiente, realçado por iluminação artificial e nível elevado, já que é onde o pregador receberá a palavra. O interior do templo se abstrai em paredes lisas sem imagens (tendência comum aos evangélicos desde Lutero), irrelevantes numa doutrina que ritualiza coletivamente seu espaço sagrado, em que o corpo ocupa a função de gerar iconografias (Rojas, 2011). Neste prédio, o portão é a única fonte de luz natural para o salão, já que as paredes laterais e posteriores não apresentam janelas. A fachada, mediadora entre a Igreja e o centro de Belo Horizonte, é o único elemento decorativo construído e adquire o papel de representar a identidade daquela congregação. A IPDA utiliza uma placa estampada com a logomarca da igreja sobre um céu azul, que paira sobre a entrada como uma releitura pentecostal do pronao grego ou do nártex romano, reduzido ao que uma placa pode mostrar.
A descrição também se aplica a maioria dos templos pentecostais da cidade. As pequenas variações, como forma redonda (Igreja Internacional da Graça de Deus, localizada no Edifício Acaiaca), no subsolo (Igreja Internacional Despertar da Fé, Rua Tupis, 431) ou presença de luz natural (Santuário Da Igreja Forte O Ninho Das Águias, Av. Augusto de Lima, 655), aparecem por especificidades pré existentes no terreno.
Outra constância nesses templos é a busca permanente pelo templo ideal para o exercício comunitário da fé (materializadas em diversas reformas e mudanças) e a produção de uma estética própria (Rojas, 2011). O ambiente ultrapassa sua função primária e torna-se extensão da imagem dos fiéis, em que todas as intervenções atingem também a imagem pessoal dos frequentadores. Por isso, a apropriação de signos estéticos de camadas sociais superiores é desejada, num esquema de trabalho tipicamente kitsch. Possuir um espaço para manifestar a expressão coletiva torna-se vital para denominações consolidadas, na medida em que sua personalização determina também o domínio, posse e possibilidade de aproximação a outros extratos sociais (Brites, 1991).
Se a tradição antropológica ligou a questão da alteridade (ou da identidade) à do espaço, é porque os processos de simbolização colocados em prática pelos grupos sociais deviam compreender e controlar o espaço para se compreenderem e se organizarem a si mesmos. (Augé, 1994, p.158)
Outrora condenado pelo cânone modernista europeu, aqui o ornamento é basilar na construção da ficção do empreendimento pentecostal. Os símbolos são aplicados ao edifício e tornam-se essenciais para comercializar a superfície arquitetônica. A dinâmica não nasce de tais igrejas, mas foi importada, ou comprada, ou reproduzida, da mercantilização espacial ofertada pelo mercado imobiliário.
Como narrado por Harvey (2008), a mobilização da moda em mercados de massa, em detrimento aos mercados de elite, acelerou o ritmo do consumo de qualquer coisa produtificável para um público imenso: Planeta Prêt-à-porter. A velocidade da tomada de decisões privada e pública aumentou, num cenário potencializado pela comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte, causando uma “compressão do espaço-tempo”.
Cançado (2002) classifica a arquitetura vendida por esse mercado como uma presença desprezada pelo pensamento intelectual formal. O relevante para esse tipo de construção é a capacidade de gerar lucro, então o edifício torna-se um dispositivo de veiculação publicitária na cidade, como produto ou como superfície para display, placas e mensagens: Arquitetura Prêt-à-porter.
A arquitetura incorporada por grande parte das denominações pentecostais é determinada pela mesma lógica da cultura de massa. Essa questão ganha novos contornos pela velocidade proporcionada pela virtualização da informação, em que tanto as trocas monetárias quanto o fluxo de informações e estímulos ao cérebro consumidor tornam-se ainda mais abstratos e potentes. Os produtos dessa indústria pós-fordista, geralmente baseados em modas, nostalgia, pastiche e kitsch, funcionam como fonte de capital simbólico para classes e meios, como por exemplo igrejas, que buscam um produto cultural como marca de sua identidade: Prêt-à-porter Church.
A disponibilização em massa de elementos construtivos demandava estandardização da produção e um marketing especial de ampla divulgação. A padronização de peças, fundamental para a expansão kitsch pentecostal aparece nos esforços modernos do começo do século XX. Experimentações em busca de uma objetividade arquitetônica, baseada na eficiência e modulação da construção foram objeto de pesquisa de Le Corbusier (Cançado, 2002). Em 1915, o arquiteto francês apresentou a Dom-Ino, série de casas montáveis em peças pré-fabricadas acopláveis a uma fundação. É apenas um dos exemplos de tendências comuns ao modernismo europeu de reduzir o padrão habitacional ao mínimo necessário, politicamente motivado pela escassez do pós guerra e das tecnologias da industrialização.
A estandardização foi absorvida com simpatia pelas políticas do Estado Novo de Vargas, que via na industrialização caminho para a tão sonhada modernidade, que já assombrava o território desde os esforços republicanos (Starling, 2002). Artigas, em 1951, acusa os experimentos corbusianos como ferramentas a serviço dos EUA. Por trás do rigor científico, a normatização da produção possibilitaria a penetração de produtos industrializados estrangeiros no país. Cada parafuso, viga ou azulejo viriam embutidos com a ideologia imperialista. Mais tarde, a Ditadura Militar facilitou a adesão nacional a qualquer projeto liberal e assim, o “milagre econômico” aliado ao aceleramento da urbanização e industrialização geraram uma nova classe média ávida por objetos de consumo (Cançado, 2002). Essa demanda será atendida de bom grado por uma cena de construção dominada por construtoras, engenheiros, marketeiros e administradores em que os arquitetos não têm quase nenhum poder de decisão.
A produção arquitetônica pentecostal se estabeleceu menos como um estilo e mais como uma customização personalizada dos espaços de acordo com a doutrina religiosa, influências da indústria construtiva e recursos disponíveis. Munidos de bloquinhos industrializados e a missão de crescer e multiplicar, os templos frequentemente reinterpretam referências consideradas intelectualmente superiores, que variam de tendências do mercado construtivo até civilizações antigas (geralmente Roma e Israel), com elementos de fácil consumo e identificação. Como toda tradução, o referencial chegará no fim do processo distorcido e alterado, nesse caso pela falta da mesma técnica e conhecimento do original.
No caso da Igreja Reino dos Céus, o imaginário hebraico será fundamental para sacramentar a solidez da igreja em uma espécie de mito fundador, que legitime seu propósito teológico. Para isso, são utilizados menorás, estrelas de davi e talits deslocados de seu significado judaico original. O impacto das imagens importadas não é diretamente assimilado, mas catalisa com sua presença o surgimento de ideais potencialmente presentes (Strauss, 2008). Os frequentadores da denominação não objetivam tornar-se judeus, mas estabelecer inédita relação com esses elementos.
A Igreja Reino dos Céus é um conglomerado religioso que possui templos por toda Belo Horizonte, a emissora Milagres na TV, produção de livros e um parque temático localizado na RMBH chamado Monte Maanaim. É provavelmente a vertente pentecostal da cidade que melhor atrelou sua identidade com referências hebraicas.
No ano de 1978 uma forte luz vinda do Monte Maanaim encobriu o carro do jovem missionário que seguia no seu caminho de evangelização, e socorro espiritual, aos que sofrem. Começava ali os três anos de preparação para um apostolado vitorioso que seria marcado por grandes sinais. Em 28 de janeiro de 1981 iniciou-se a história do apostolado do Missionário Adelino de Carvalho que impactaria multidões de pessoas no Brasil e por todo o mundo.
A denominação estabeleceu como estratégia expansionista o trabalho de panfletagem, no qual são espalhados pela cidade papéis com discursos de possibilidade libertação de drogas, doenças, desemprego, relacionamentos destruídos, sofrimento, inveja, bruxarias, feiticeiros, demônios, pontos riscados e amarrações. Como contraponto a um mundo hostil, a igreja aparece como possibilidade de transformação, ofertando sessões sincréticas de:
Lavagem das mãos nas bacias sagradas da purificação com o Sangue do Cordeiro;
Atendimento gratuito com missionários exorcistas;
Corrente forte da devolução;
Poderosa corrente do Anjo Miguel, o anjo da corrente;
Poderoso Vale do Sal: Roda de Sal e Fogo;
O Óleo da Cura Divina.
Os nomes das denominações, templos e ritos (que geralmente evocam imagens do pentateuco ou de pentecostes) contribuem para criar atmosfera, sensação e valor imaginários para os fiéis. Embaçam a vida cotidiana com a promessa de uma utopia possível, evocando lugares e realidades distantes, porém desejáveis. A manipulação do tempo ou das referências geográficas são possibilitadas pelo exercício utópico, inclusive situando o objeto em um tempo imaginado ou irreal (Cançado, 2002). A Igreja Reino dos Céus abandona identidades culturais autóctones, criando ritos e imagens exagerados que amalgamam o falso e o verdadeiro (Brites, 1991). É uma estratégia bem sucedida de construir um ambiente hermeticamente ungido, permeado de elementos contrastantes com a realidade brasileira, mas sem abandonar referências aos desafios típicos da sociedade em que está inserido.
A denominação é um exemplo de como a informalidade e transitoriedade dos Tabernáculos móveis proporcionam espaço para criação e improvisação ritualística dos presentes, que contribuem para a performance do fogo divino com sua bagagem particular. É nesse tipo de igreja que é possível encontrar narrativas e referências inesperadas que penetram o tecido pentecostal no momento do rito. Desde as primeiras experiências de William Joseph Seymour com o batismo do Espírito Santo em sua congregação preta em Los Angeles, até os cultos de qualquer templo da Universal, a presença de outros saberes, tanto nos corpos quanto nos ritos, pode ser apontada.
A sobrevivência de ritos marginalizados em religiões dominantes é comum na história brasileira, já que as práticas intelectuais dos povos não brancos sobreviveram a um processo agressivo de apagamento e demonização pela inscrição sutil e resistente em meio a cultura imposta desde o início do projeto colonial europeu (Martins, 2021). O contato sediado no Brasil colônia entre os distintos ethos étnicos formatou uma nova cultura nacional num processo de mútua influência, uma vez que os arcabouços europeus, africanos e indígenas trombaram-se numa fricção suficientemente violenta e significativa para criar rusgas e fissuras em todos os envolvidos. Pelo desequilíbrio na ordem de poderes entre os grupos, os negros e indígenas precisaram de artifícios e instrumentos inimagináveis para garantir a sobrevivência de uma gama de conhecimentos próprios, como uma reterritorialização e reimplantação dos princípios basilares dos povos nesse "trânsito sistêmico e epistêmico que emerge dos processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e se entrecruzam — nem sempre amistosamente — práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim." (Martins, 2021, p. 35)
Taxa de Fiscalização de Engenhos de Publicidade: ISENÇÃO - Lei 5.839/90
(...)
Art. 14 - Fica concedida a isenção das seguintes taxas:
I - TFEP, em se tratando de engenhos:
a. destinados, exclusivamente, à identificação de:
4 - templo de qualquer culto e de instituição de educação e assistência social que goze de imunidade;
Então, disse o Senhor a Aarão Reis: Por que clamas a mim? Dize aos filhos de Minas que dirijam. E tu, levanta o teu volante, e estende a tua máquina sobre o Arrudas, e fende-o, para que os filhos de Minas passem pelo meio do ribeirão em seco. Então, Aarão estendeu as suas rodas sobre o Arrudas, e o Senhor fez retirar o ribeirão por betume toda aquela noite; e o ribeirão tornou-se Avenida dos Andradas, e as águas foram partidas. E os carros dos filhos de Minas entraram pelo meio do ribeirão em seco; e as águas lhes foram como asfalto à sua direita e à sua esquerda.
Quem percorre, hoje, a Avenida dos Andradas sobre o Ribeirão Arrudas, vê igrejas pentecostais ocupando grandes galpões, que antes do parque industrial de Contagem, abrigavam as indústrias da cidade. Freitas (2022) classifica essa tipologia como espaços de grande escala, geralmente galpões adaptados, localizados em vias de grande escoamento. O fenômeno é uma evolução da típica ocupação pentecostal de espaços urbanos não especializados. Mas, diferente de pequenas congregações que acumulam frequentadores em ambientes reduzidos, a principal demanda dessas igrejas é um lugar suficientemente grande para seu mar de fiéis. Solucionado o problema da escala ao ocupar antigas fábricas e depósitos, tais edifícios estarão envoltos por símbolos e ícones que transmitem a identidade da congregação. No caso da Igreja Internacional da Graça de Deus, que ocupa o número 1005 da avenida, o reconhecimento é feito por placas e murais gigantes que utilizam a fachada como um mural ou quadro de informações.
A Igreja Internacional da Graça de Deus nasceu no Rio de Janeiro, pelos esforços do Missionário R. R. Soares, apresentador do Show da Fé. É uma cisão da Universal, e apresenta administração e teologia semelhantes, com agenda semanal parecida, ênfase na cura e expulsão de demônios, teologia da prosperidade e gestão centralizada. É reconhecida por seu trabalho de evangelização pela mídia, estratégia semeada na vida de R.R. após seu primeiro contato com uma televisão. Segundo a própria instituição, o missionário percebeu o fascínio causado por aquele aparelho aos 11 anos de idade e orou a Cristo pela chance de utilizar esse meio para espalhar a Palavra: “Ninguém está usando esta nova invenção para falar do Senhor, meu Deus. Dê-me os meios e a oportunidade, e eu estarei naquela tela falando do Seu amor”. O status de celebridade garante bênçãos diversas na gestão de R.R., como a emenda que perdoou dívidas tributárias de igrejas relatada por seu filho, o deputado federal David Soares (DEM-SP), que poupou a IIGD de pagar R$37 milhões para a receita (Mendes, 2020).
A fachada da IIGD, assim como a das igrejas vizinhas que ocupam espaços semelhantes (caso da Igreja de Cristo e Igreja Cidade Mundial de Minas Gerais), precisa comunicar de forma rápida e eficiente a mensagem daquele edifício para os transeuntes, que geralmente estão em alta velocidade em carros, motos e ônibus. A estratégia é parecida com a que Brown, Venturi e Izenour, em "Aprendendo com Las Vegas" (2003), chamavam de “galpão decorado”: edifícios em que a forma e estrutura estão separadas de sua comunicação principal.
No caso dos Galpões ungidos, a logomarca, imagem do líder religioso e horários dos cultos dominam o espaço como um elemento na arquitetura, e consequentemente na paisagem da Avenida dos Andradas, ou de outros polos industriais que ofereçam construções da escala necessária, como o Parque Industrial de Contagem.
“A persuasão comercial do ecletismo de beira de estrada provoca um impacto audacioso no marco vasto e complexo de uma nova paisagem de grandes espaços, altas velocidades e programas complexos. Estilos e signos fazem conexões entre muitos elementos, bem distantes e vistos depressa. A mensagem é rasteiramente comercial; o contexto é basicamente novo” (Venturi et al., 2003, p.33).
A transição entre rua e templo é brusca, já que os galpões não foram planejados para abrigar tal função. A configuração do Galpão ungido complexifica o papel das portas em organizar o caráter oposto entre dentro e fora, santo e profano, pessoal e universal (Eliade, 1992). A possibilidade de reconhecer certa ordem divina em objetos e espaços do cotidiano, como galpões gigantescos, foi cunhada por Eliade (1992) como Hierofania. O espaço religioso é uma hierofania não homogênea, composto por rupturas, variações entre significados e poderes. “Mais ainda: para o homem religioso essa não-homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma oposição entre o espaço sagrado – o único que é real, que existe realmente – e todo o resto, a extensão informe, que o cerca”. A sacralidade é manufaturada pelos fiéis em meio a um território desconhecido e desocupado por meio dos rituais, agora potencializados pelos m² conquistados. Os cultos da Internacional chamam atenção pela força das filas enormes que deixam os bancos e marcham pelo salão em busca da cura.
Em outro ponto da Avenida Andradas, a Igreja Quadrangular do Floresta também se estabeleceu em um galpão, mas sobrepôs na estrutura regular de um depósito uma fachada de vidros azuis espelhados e um elemento destacado escuro com seus símbolos e logos em peças extrudadas em inox escovado. A intervenção denuncia o surgimento de outra tipologia relevante na produção arquitetônica pentecostal de caráter ostensivo e simbólico, que aqui chamarei de Palácio YHWH por basearem sua estabilidade no tamanho, luxo e referências hebraicas.
LUOS (LEI Nº 7166, DE 27 DE AGOSTO DE 1996)
*É admitido pé-direito superior a 4,50 m (quatro metros e cinqüenta centímetros), sem acréscimo de área a ser computada (templos religiosos)
*Exclusão de necessidade mínima de vagas para templos e locais de culto
Ocupando um terreno de 8700m², o maior templo da IURD em Minas Gerais está inserido no projeto da Era das Catedrais, que diferente das igrejas em espaços improvisados, instalam-se em avenidas, ruas principais e bairros valorizados, posicionados como símbolos facilmente identificáveis na paisagem urbana (Gomes, 2004). A IURD do Lourdes é a caracterização física da identidade iurdiana belo horizontina, ao passo que abriga objetos, ornamentos e detalhes estilísticos para sua consolidação como referência de um grupo, da mesma forma com que seu vizinho, o Edifício JK, era anunciado por Kubitschek como “marca registrada” da “a silhueta da cidade” (Teixeira, 1999, p. 212 apud Cançado, 2002, p. 30). Foi construído com estruturas pré-moldadas de concreto e abriga dois espaços de culto, que mantém uma estrutura interna semelhante ao cânone católico, com uma nave principal e naves laterais que direcionam para o altar.
O primeiro passo para a construção de uma catedral iurdiana é o lançamento de uma Bíblia a ser concretada por baixo da fundação, como uma pedra fundamental que sustenta a obra divina. Acima disso, revestimentos de luxo, toneladas de pedras israelenses importadas e muitas polêmicas constituem uma típica catedral. A unidade carioca foi erguida sem licenciamento, a paulistana, sob investigações do Ministério Público, e a belo-horizontina destruiu um conjunto de casarões tombados para a construção de um estacionamento.
O empreendimento marca um novo período para a Universal, que anteriormente era conhecida por adaptar edificações pré-existentes, como galpões, cinemas, teatros e supermercados, para a confecção do seu terreno sagrado (Gomes, 2004). Esse novo período, reconhecido pelo Templo de Salomão em São Paulo, ou Templo da Glória do Novo Israel no Rio de Janeiro, objetivou a construção de múltiplas catedrais, com novos parâmetros estéticos e de ocupação.
Frequentei pela primeira vez um culto na Universal numa terça-feira. A data é relevante no meu relato pois a instituição oferece celebrações diferentes em cada dia da semana: no domingo, louvor e busca do encontro com Deus; segunda, reunião sobre prosperidade, finanças e empreendedorismo; terça, A Corrente dos Setenta; quarta, busca pelo espírito santo e agradecimento; quinta, culto pela família; sexta, libertação de almas e sábado, problemas sentimentais e afetivos. Funciona todos os dias da semana, com reuniões às 6:00, 8:00, 10:00, 12:00, 15:00 e 19:30.Acompanhei uma celebração realizada no salão principal, com capacidade para 5000 fiéis e equipado com alta tecnologia de projeção e som. É um salão que intensifica a sensação de gigantismo da fachada, com pé direito de 10 metros, coberto com uma criteriosa combinação de revestimentos nobres, como mármore, forro acústico e vidros coloridos, com tecnologias pop da indústria construtiva, como pré moldados de plástico e metal. É uma ambientação austera que quebra sua palidez minimalista com elementos da arquitetura clássica, como colunas gregas e vitrais góticos, que aparecem mais como acessórios do que como base da concepção do ambiente. Segundo o bispo Marcelo Crivella, engenheiro civil, “o estilo de todas as construções é eclético com referência ao neoclássico, contendo pórticos e colunas característicos das grandes construções da Grécia”. De acordo com Gomes (2004), o ecletismo iurdiano permitiu a incorporação de elementos diversos, mas com padronização de determinados componentes reproduzidos em todas as catedrais.
O “neoclássico” carreia a intencionalidade da permanência, da fixidez e da potência da instituição no investimento em sua própria consolidação. Já o ecletismo pode ser analisado de acordo com a própria dinâmica da IURD, reconhecida por sua capacidade de adaptação. A associação entre estas duas categorias expressa a forma nativa de autenticidade, composta pelo poder de permanência sugerido pelo estilo neoclássico e pela característica de adaptabilidade, vista na utilização de edificações funcionais, como no caso de cinemas e supermercados. (Gomes, 2004, p. 113)
As cadeiras em ótimo estado são escalonadas até um ponto mais baixo, em que ergue-se um altar com a inscrição "JESUS CRISTO É O SENHOR” acompanhado de dizeres em hebraico e um menorah de 2 metros de altura, peça símbolo do judaísmo, em que pode ser lido יֵשׁוּע: YESHUA, o verdadeiro nome de Deus, em hebraico. A Universal fundamentou sua identidade com base no ideal de Terra Santa representada pela Israel bíblica, que geralmente se misturam com o Estado moderno existente hoje no Oriente Médio, e referências ao território, sua cultura e língua são frequentes nessa denominação.
O discurso de identificação com o “povo sagrado” (Israel) expressa um aparato simbólico, relacionado a um mito de origem, de suma importância em seu cotidiano, embora já presente desde seus primeiros anos. Sempre que a temática envolve a relação entre perseguição-revolta-sacrifício-conquista, o desafio-sacrifício-conquista, a analogia é estabelecida. (Gomes, 2004, p. 127)
No dia visitado acontece A Corrente dos Setenta, focado na cura de enfermidades físicas e espirituais. Nesse ritual, os doentes passam por um corredor humano formado por 70 obreiros que oram e impõem as mãos sobre todos, para que se cumpra a promessa, como profetizado no Novo Testamento (Bíblia, Mc, 16, 18). O culto começa com músicas ecoadas pelas caixas de som e reafirmadas pelo pastor, que anuncia o primeiro rito: de mãos dadas, os fiéis formam uma corrente para a expulsão de demônios, por meio da fala. Orações, sussurros, gritos e línguas aceleram coletivamente as emoções e culminam numa erupção de sentimentos compartilhados. Esse estágio é essencial para que os presentes possam passar pelo Manto Sagrado, que é o centro daquela celebração.
O Manto Sagrado é um enorme tecido erguido pelos 70 obreiros como um túnel, em que os que procuram a cura devem passar enquanto tocam no pano e, caso haja realmente fé, serão libertos de qualquer doença. A eficácia é comprovada por depoimentos colhidos na plateia e transmitidos nos três grandes telões de fiéis que se libertaram de cânceres, doenças terminais e vícios diversos logo no primeiro contato com o Manto. Os desejosos levam exames, radiografias, receitas, medicamentos e fotos de familiares que são atirados ao chão debaixo do Manto enquanto o corpo da igreja percorre o caminho divino demarcado pelo tecido.
Logo após, os fiéis retornam aos bancos para receber bênçãos dos obreiros que posicionam as mãos nas cabeças de fiéis selecionados. Fui alvo de duas orações. Enquanto isso, observei que uma mulher na plateia reagia de maneira diferente dos demais, mesmo pros padrões ultra diversos da Universal. Digo isso pois é impossível delinear o frequentador médio da IURD, que atinge todas as classes, raças, gerações e maneiras de expressão de fé. Mas a mulher rompeu a paisagem do espaço com seu corpo que se projetava para a frente como um arco, enquanto tremia e gemia. É a postura clássica daqueles possuídos por demônios que figuram nos altares da IURD em seus cultos diários, com transmissão e acervo online. O que testemunhei a seguir corresponde com o que é exibido em diversos vídeos da igreja.
A mulher retorcida, guiada para o altar pelos obreiros, se apresenta como uma entidade com um timbre de voz metálico. A entidade nomeia-se, sob pedido do Pastor: Exu Arranca Toco. Ele não aparece sozinho, mas sob o anúncio de que seu receptáculo humano contém 21.000 demônios, e esse é o motivo das dores de coluna e perna que motivaram a presença da mulher naquela igreja. O diagnóstico na casa dos milhares e a suposta aparição de entidades de matriz africana é banal na Universal, que frequentemente exibe seres humanos com algumas milhares de entidades no corpo, que apresentam-se como elementos de outros cultos. O Pastor, não satisfeito, demanda uma conversa com a liderança do grupo, que prontamente obedece. E, finalmente, a igreja pode ouvir as palavras de Lúcifer, entrevistado pelo Pastor sobre temas como o valor da alma, existência pós morte e Deus, por intermédio do corpo feminino, filmado bem de perto pelo cinegrafista que acompanha a movimentação no palco e projetado em grandes telões para o salão eclético.
O culto atinge o clímax espiritual quando o Pastor liberta a mulher dos 21.000 demônios, instante em que a relação fé-palavra-corpo-câmera é tensionada ao limite pelos personagens filmados no espaço, com destaque para a mulher transformada pela ação do líder religioso escalado para o quinto horário daquela terça-feira. A evocação de supostos demônios num altar cristão macula o significado casto que o espaço representa, mas Eliade (1992) defende que é permitido por serem também rituais com o poder de estancar o tempo linear e toda sua lógica em nome do tempo religioso, embebido em mistério.
É importante enfatizar que, nesses encantamentos mágicos de cura, os mitos acerca da origem dos medicamentos estão sempre inter relacionados com o mito cosmogônico. Sabe-se que nas práticas de cura dos povos primitivos, como aqueles que se baseiam na tradição, o medicamento só alcança eficácia quando se invoca ritualmente, diante do doente, a origem dele. Um grande número de preceitos mágicos do Oriente Próximo e da Europa inclui a história da doença ou do demônio que a causou e esconjura o momento mítico, no qual se exige a uma divindade ou santo que vença o mal. Parece assim que o mito da origem é uma cópia do mito cosmogônico, pois este serve de exemplo para todas as origens. Por isso, surge também, muitas vezes, nos exorcismos terapêuticos, o mito cosmogônico do mito da origem, e até se confunde com ele. A eficácia do exorcismo reside em que ele, executado ritualmente, atualiza o Tempo mítico da “origem”, tanto da origem do mundo como da origem da dor de dente e sua cura. (Eliade, 1992, p. 45)
A mensagem de todo o culto é que os necessitados de cura e mudança de vida podem solicitá-la e recebê-la automaticamente dentro de uma catedral iurdiana, caso a fé seja verdadeira. Até mesmo o batismo foi oferecido pelo Pastor, que realizaria o rito na piscina batismal localizada em um nível mais baixo no altar, para aqueles com interesse sincero em unir-se à IURD. Esse imediatismo é marca da Universal, mas a instituição precisa instigar os presentes a voltarem. Então, o culto é permeado pela distribuição de panfletos, cartas, envelopes e sacolas com divulgação de outros eventos da semana, todos classificados como imperdíveis e poderosos. Recebi um panfleto com espaço para anotar minha dívida, que demandava presença na próxima segunda; uma sacola customizada com símbolos da medicina para trazer meus remédios na próxima terça; uma carta lacrada que poderia ser aberta apenas na quarta; e um envelope para depositar o dízimo.
O momento do dízimo é reservado para o final, em que o Óleo Ungido é ofertado pelos obreiros próximo do altar. Em uma mão, seguram o vaso com óleo, e na outra uma máquina de cartão de crédito. O pagamento do dízimo não é necessário para receber o Óleo, mas visualmente é indissociável.
Advindo de cultos improvisados no Coreto do Méier, no Rio de Janeiro, a Universal trilhou um rápido caminho até o estágio da produção de edifícios gigantes. Produzem uma arquitetura pós-moderna, baseada em apropriação de elementos diversos numa colagem que traduz a verve daquele grupo, mas sem o rigor de uma produção intelectualizada. Essa aparência pode parecer estranha àqueles nascidos e vividos em espaços em que os símbolos e faro estético estão ainda alinhados com normas modernistas, mas atinge um grande público e funciona como amalgamador de uma massa que se identifica, se enxerga e produz a estética. Talvez como estratégia de diferenciação, até quando há o acesso a verba, as igrejas pentecostais decidem não aderir a estilos plenos do cânone arquitetônico, que por sua vez foi amplamente utilizado pelo Vaticano, até mesmo os mais ousados, como o Modernismo.
O típico espaço iurdiano, caldeirão de símbolos e discursos, é receptáculo para uma expressão de fé corpórea livre, com a possibilidade de emprego de referências diversas trazidas pelos fiéis, em que a fixação em temas demoníacos e o amplo registro em vídeo delineiam uma performance pentecostal megamaximada. O poder do corpo é valorizado como traço divino, mas também é utilizado por forças inimigas possuídas por espíritos. Nessa dinâmica, apenas os que dominam a corporeidade ungida, legitimada pela cúpula da IURD, pode definir quais são as manifestações positivas e até mesmo instrumentalizar a presença de demônios para uma pedagogia endiabrada.
A Universal foi fundada em 1977 por Edir Bezerra Macedo na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, onde antes funcionava uma pequena funerária. Assim como outras doutrinas cristãs em formação no período, incorporou diversos elementos associados ao individualismo moderno, em que “a fantasia dos fiéis de se tornarem ‘milagrosamente’ ricos é exacerbada” (Oro, 2003, p.32). Essa abordagem teológica é comum às igrejas da terceira fase do pentecostalismo, batizada de Neopentecostal. Nessas denominações, a Teologia da Prosperidade, crença de que o cristão deve ser “próspero, saudável, feliz e vitorioso em seus empreendimentos terrenos” (Mariano, 2004), é amplamente distribuída. Valem-se da pouca idade para desprender-se de tradições temporais e fazem da proximidade com o mundo secular sua maior força. Assim, adaptaram-se às necessidades urbanas por meio de inovações dizimais, de técnicas modernas de evangelização e de novas formas de se relacionar com a cultura local. Abarca as igrejas fundadas a partir de 1970, como a IURD, a Igreja Internacional da Graça de Deus e a Sara Nossa Terra.
Tal onda religiosa é simultânea ao surgimento de uma ideologia neoliberal e atuação política nacional de valorização do trabalho empreendedor e o consumo ostensivo. A Teologia da Prosperidade iniciou sua penetração em muitas igrejas e ministérios brasileiros no fim dos anos de 1970, período em que políticas de Estado mínimo, da eficiência, da produtividade e do comércio, tornaram-se protagonistas no debate político e intelectual e nas tomadas de decisão em grupos empresariais e financeiros. Há o aumento da midiatização da economia, negócios, colunas sociais sobre ricos, que, de um modo geral, dão voz a diferentes tipos de “vencedores”.
Os fiéis da Universal ocupam a base da pirâmide social brasileira, e assim excluídos do trabalho lucrativo. Porém, são atingidos pela ideologia individualista que equivale trabalho = sucesso. São atraídos, assim, para a comunidade iurdiana sujeitos de pouco acesso social que adotam para si o objetivo de empreender para alcançar a abundância divina prometida (Lima, 2007). Os símbolos articulados pela IURD para pregar a mensagem, divulgada massivamente, encontram ressonância no sistema simbólico de uma sociedade moldada por ideologias econômicas de prosperidade, e assim a Universal tornou-se uma das Igrejas mais populares no Brasil.
Os símbolos têm origens distintas e inesperadas, fazendo do arcabouço universal uma colagem multicultural digital global. As igrejas neopentecostais são menos ligadas à pauta de costumes e rompem com parte do ascetismo e disciplina estereotipado dos evangélicos (Mariano, 2004). São ofertadas sessão espiritual de descarrego, fechamento de corpo, retiram encostos, desfazem mau-olhado, aspergem os fiéis com galhos de arruda molhados em bacias com água benta e sal grosso, substituem fitas do Senhor do Bonfim por fitas com dizeres bíblicos, evangelizam em cemitérios durante o Finados e oferecem balas e doces aos adeptos no dia de Cosme e Damião (Mariano, 2004). Apesar das apropriações, condenam as origens de tais ritos. A sobreposição de referências é interpretada de distintas maneiras pelas denominações religiosas, significando fortalecimento espiritual e declínio da secularização para algumas, enquanto outras interpretam o pluralismo como o desenraizamento e sinal de declínio que contribui para o processo da secularização.
Lei - 11610/2023
Ementa: Garante a templos, escolas confessionais e instituições mantidas por entidades religiosas a atribuição do uso de seus banheiros de acordo com a definição biológica de sexo.
Em 2013, a Igreja Batista da Lagoinha reuniu um público de 10.000 pessoas para ouvir a norte-americana Cindy Jacobs em um dos seus congressos, realizados na sede da igreja no bairro Concórdia (Rosas, 2015). Atuante em Belo Horizonte desde 1957, a IBL é uma cisão da igreja batista tradicional, e surge com o objetivo de estabelecer o Batismo no Espírito Santo, rito não aceito na teologia original. É liderada por Márcio Valadão, pastor e pai dos pastores e cantores Ana Paula, André e Mariana, figuras nacionalmente populares e presentes no ministério desde a infância.
Na ocasião, a pastora profetizou que um grande avivamento espiritual aconteceria no Brasil e da IBL sairia um presidente pentecostal eleito. Ao seu lado do palco, Ana Paula Valadão traduzia simultaneamente as boas novas para o português. Não foi a primeira vez que Ana Paula serviu como intermédio entre a evangelização dos dois países: foi educada em um seminário teológico em Dallas e de lá exportou ideias basilares para o sucesso da igreja de sua família. A discussão de assuntos políticos e econômicos nos palcos da Lagoinha é influenciada pela Teologia do Domínio, abordagem teológica que defende a dominação cristã nos “Sete Montes”: família, religião, educação, mídia, lazer, negócios e governo (Pereira, 2023). É o que os Valadão estabeleceram com a criação do Diante do Trono, grupo musical que transformou a maneira de evangelização multimídia e uso do corpo nos ritos pentecostais.
A empreitada da família Valadão funcionou ao relacionar seu projeto teológico à indústria de produtos efêmeros. Anteriormente focado na produção de bens, objetos e itens, a indústria adquire mais lucro com a venda de elementos imateriais, como eventos e espetáculos, por seu curto tempo de vida (Harvey, 2008). A estratégia atinge um segmento jovem, o que complexifica a relação da IBL com demandas seculares. Tendências como gêneros musicais e vestuário são absorvidas com facilidade, mas questões de gênero e sexualidade ainda geram controvérsias.
O Diante do Trono instrumentalizou a corporeidade fornecida pelo Espírito Santo em práticas artísticas (Rosas, 2015). Por intermédio do pastor-cantor modelo em destaque, os fiéis ritualizam a fé de acordo com o representado no palco, por meio de danças e cantos coreografados. Segundo Calvani (2014), o advento do palco no lugar do altar ou púlpito é típico das juventudes incorporadas às celebrações pentecostais pelo sucesso da música gospel. Os templos que mantém um palco como centro da pregação são projetados como casas de shows, ocupando grandes salões escuros com alto investimento em iluminação e acústica.
Tal tipologia foi batizada informalmente como Parede Preta pelo público evangélico pois a infraestrutura de transmissão e luz geralmente apresentam-se num interior escuro, pintado de preto. O negrume é importante para destacar as projeções e os corpos ritualizados que dançam no salão. A iluminação permite que o espaço torne-se simultaneamente monumental e mutável, ao expandir os limites físicos por meio da luz e sombra (Venturi, 2003). Os shows de adoração intensificam as sensações que o espaço religioso pode oferecer, ofertando um ambiente de fortes emoções construído “pela coreografia dos dançarinos e pelos apelos ao público para que feche os olhos, ajoelhe, coloque as mãos no coração” (Cunha, 2004, p. 175).
Durante sua expansão, o edifício central da IBL trocou seus revestimentos internos, originalmente em madeiras e tons claros, por aparelhagem hi-tech e paredes pretas. O período marcou também o arrefecimento das chamas do Espírito Santo, já que os próprios ritos tornaram-se menos emotivos e espetaculares ao passo que a igreja atingia plateias cada vez mais elitizadas. A IBL ainda incentiva a tradição da glossolalia, mas nada tão espetacular como os corpos caídos e reprodução de sons e gestos animais na plateia e no palco banais durante os anos 2000, como a Unção do Leão performada por Ana Paula: a pastora engatinhava e rugia em meio ao transe espiritual.
A estratégia foi gestada em denominações contemporâneas, como a Bola de Neve Church ou a Igreja Central, e exportada para outras igrejas pentecostais tradicionais. Exemplo disso é a reforma da fachada do templo central da Assembleia de Deus em Belo Horizonte, que ocupa o número 1341 da Rua São Paulo, no Centro. Em 2019 o edifício tipicamente sóbrio em linhas retas foi envelopado em placas de ACM roxo, vidros espelhados e leds brilhantes. O ACM é a junção de duas chapas de alumínio com uma chapa de polietileno, o polímero mais utilizado no mundo. É um dos milhares de produtos plásticos fruto de uma transformação ecológica em grande escala que resulta na destruição de recursos energéticos, no consumo rápido e em grande poluição (Preciado, 2008). É massivamente utilizado nas igrejas pentecostais analisadas e foi uma das soluções construtivas importadas da arquitetura comercial.
A Parede Preta é fruto de uma nova configuração que organiza-se nas lógicas digitais e de seus processos de produção de sentidos. Os discursos são transmitidos em tempo real nos telões, alto-falantes, rádios, TVs, sites e redes sociais. Os dispositivos e os regimes discursivos nele produzidos formatam uma prática religiosa próxima da lógica do espetáculo, pronto para ser consumido por meio de espaços filmáveis e postáveis, não mais no formato horizontal típico das TVs, mas verticalizado pelo advento dos celulares (Preciado, 2023). A digitalização pentecostal aproxima seus símbolos ao cotidiano das pessoas de maneira sutil e eficaz, potencializados pelo imediatismo e fragmentação natural desse veículo.
O espaço sagrado pentecostal, e por sua vez sua arquitetura, estética e discurso, é fundamentado no rito do corpo fiel embebido no Espírito Santo. Valoriza-se a potência do ser ungido em detrimento de uma experiência coletiva, compartilhada com aqueles sob o mesmo transe, mas quase nunca com o mundo, a natureza ou a galáxia. Tal postura dificulta o diálogo do pentecostal com o exterior do templo, ao mesmo tempo que, durante o rito, o fiel pode aplicar sua bagagem cultural moldando sua forma de adorar como uma colagem.
Ideologias individualistas, neoliberais e ascéticas aderem-se ao Pentecostalismo justamente pela postura interiorizada. Postura essa que remonta o berço do movimento, nascido no protestantismo norte americano, que provavelmente preconizava ou tinha o individualismo e ascetismo como base. Mesmo sem saber se quem veio primeiro foi o crente ou o Santo, pode-se delinear uma produção arquitetônica pentecostal contemporânea munida de ferramentas da indústria construtiva e imobiliária, determinantes de forma física final.
As paredes de um templo pentecostal, independente de sua tipologia, são cristalizações da ritualística do grupo, onde pode-se experimentar outras linhas temporais, pelo diálogo entre rito, espaço e tempo. O Pentecostalismo valoriza a temporalidade linear ao acoplar discursos de progresso e vitória, mas que se dissolvem em outras temporalidades durante a glossolalia, o manto, o reteté, o batismo. Tudo isso sobreposto à aceleração e inconstância típicas das cidades contemporâneas.
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