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GALPÃO UNGIDO

Arrudas

Então, disse o Senhor a Aarão Reis: Por que clamas a mim? Dize aos filhos de Minas que dirijam. E tu, levanta o teu volante, e estende a tua máquina sobre o Arrudas, e fende-o, para que os filhos de Minas passem pelo meio do ribeirão em seco. Então, Aarão estendeu as suas rodas sobre o Arrudas, e o Senhor fez retirar o ribeirão por betume toda aquela noite; e o ribeirão tornou-se Avenida dos Andradas, e as águas foram partidas. E os carros dos filhos de Minas entraram pelo meio do ribeirão em seco; e as águas lhes foram como asfalto à sua direita e à sua esquerda.

Angelus Temple

As práticas de expansão tomam contornos multimídia com os esforços da Igreja Quadrangular de adentrar o mercado religioso “com seus métodos arrojados, forjados precisamente no berço dos modernos meios de comunicação de massa, a Califórnia do entre-guerras” (Freston, 1994, p.72). Ricardo Mariano (2010) avalia que as organizações religiosas desenvolveram uma gestão de caráter mercadológico na década de 1950, com a centralização administrativa e financeira, a profissionalização eclesiástica, a fixação de metas de produtividade para pastores e bispos, a minimização e o abandono de práticas ascéticas e sectárias, a adaptação dos serviços mágico-religiosos aos interesses materiais e ideais dos fiéis e virtuais adeptos (Mariano, 2003, p. 111-112).

A visibilidade pentecostal foi conquistada com sacrifício e dedicação sobre um país até então de maioria católica, e foi desestimulada por repressões policiais, pressões políticas e discriminação religiosa estatais que ameaçavam sua ação (Aleixo, 2014). Em 1953, a Igreja do Evangelho Quadrangular promove uma campanha proselitista chamada de Cruzada Nacional de Evangelização (CNE), liderada pelos missionários norte-americanos Harold Williams e Raymond Boatright (Rosa, 1978) com bastante repercussão. A CNE é sinal da formação de um novo modelo eclesial de caráter gerencial acompanhada de incorporação de práticas de gestão empresarial, marketing institucional, difusão do evangelismo de massa, uso de veículos midiáticos e promoção de eventos em espaços públicos, como praças, cinemas, ginásios, estádios de futebol e tendas de lona (Freston 1994). O trabalho sob as tendas prosseguiu e, em cada novo lugar onde eram estabelecidas, davam origem a um núcleo que se constituía em uma nova igreja.

Segundo o site da Quadrangular, a igreja foi fundada em 1° de janeiro de 1923, com a inauguração de sua sede internacional Angelus Temple, em Los Angeles, Califórnia, a partir das ações evangelizadoras da pastora-celebridade-diva pop Aimée Semple McPherson. Diferente do glamour e beleza simbolizados pela figura da Irmã Aimée, a IEQ rompe em solo belo-horizontino de maneira modesta e simples: em uma edificação alugada na Rua João da Cunha no Bairro Barroca, em um galpão caiado de uma antiga marcenaria. O empreendimento fazia parte do “Método de Crescimento da Igreja Primitiva”: cada adepto desempenha o papel de “pequeno missionário” em seu cotidiano. Após treinamento sobre preceitos teológicos e rituais básicos como evangelismo, cura divina, libertação de demônios, corinhos, salvação de almas e batismo no Espírito Santo, a casa do fiel deveria tornar-se uma “mini-igreja”, e sua atuação deveria permear a vida social, evangelizando as pessoas em sua bolha social. “Havia a meta de alcançar 20 participantes regulares, com o objetivo de crescimento gradual para que cada mini-igreja se transformasse numa nova congregação. Para evitar constrangimentos e promover um clima amistoso e solidário, proibiu-se a arrecadação de dízimos e ofertas financeiras” (Aleixo, 2019).

A estratégia vingou e o crescimento da Quadrangular veio acompanhado de mudanças inspiradas no evangelismo de massa e no televangelismo dos EUA, por estar submissa à rede estadunidense. Mais recursos são direcionados à mídia impressa, radiofônica, televisiva e virtual, com mensagens de caráter institucional e empreendedor, o que impulsiona seu processo de catedralização. Os novos discursos opõem-se à visão católica, acusados de vincular pobreza e privação a recompensas espirituais, enquanto dinheiro e prosperidade correspondem à dimensão pecaminosa, carnal e diabólica. As igrejas do período acompanham as dinâmicas da sociedade de consumo, e observa-se uma inversão simbólica que passa a vincular a miséria ao diabo e a prosperidade ao divino. “Além do passado mais liberal, dentre as igrejas mais antigas a Quadrangular seria a denominação que estaria aderindo mais rapidamente ao modelo estético, musical e comportamental capitaneado pelas neopentecostais” (Mariano, 2010, p. 209 apud Aleixo, 2019, p. 23).

Tenda Gospel Arquibancada Ministério Gospel Andradas

Quem percorre, hoje, a Avenida dos Andradas sobre o Ribeirão Arrudas, vê igrejas pentecostais ocupando grandes galpões, que antes do parque industrial de Contagem, abrigavam as indústrias da cidade. Freitas (2022) classifica essa tipologia como espaços de grande escala, geralmente galpões adaptados, localizados em vias de grande escoamento. O fenômeno é uma evolução da típica ocupação pentecostal de espaços urbanos não especializados. Mas, diferente de pequenas congregações que acumulam frequentadores em ambientes reduzidos, a principal demanda dessas igrejas é um lugar suficientemente grande para seu mar de fiéis. Solucionado o problema da escala ao ocupar antigas fábricas e depósitos, tais edifícios estarão envoltos por símbolos e ícones que transmitem a identidade da congregação. No caso da Igreja Internacional da Graça de Deus, que ocupa o número 1005 da avenida, o reconhecimento é feito por placas e murais gigantes que utilizam a fachada como um mural ou quadro de informações.

A Igreja Internacional da Graça de Deus nasceu no Rio de Janeiro, pelos esforços do Missionário R. R. Soares, apresentador do Show da Fé. É uma cisão da Universal, e apresenta administração e teologia semelhantes, com agenda semanal parecida, ênfase na cura e expulsão de demônios, teologia da prosperidade e gestão centralizada. É reconhecida por seu trabalho de evangelização pela mídia, estratégia semeada na vida de R.R. após seu primeiro contato com uma televisão.

Segundo a própria instituição, o missionário percebeu o fascínio causado por aquele aparelho aos 11 anos de idade e orou a Cristo pela chance de utilizar esse meio para espalhar a Palavra: “Ninguém está usando esta nova invenção para falar do Senhor, meu Deus. Dê-me os meios e a oportunidade, e eu estarei naquela tela falando do Seu amor”. O status de celebridade garante bênçãos diversas na gestão de R.R., como a emenda que perdoou dívidas tributárias de igrejas relatada por seu filho, o deputado federal David Soares (DEM-SP), que poupou a IIGD de pagar R$37 milhões para a receita (Mendes, 2020).

A fachada da IIGD, assim como a das igrejas vizinhas que ocupam espaços semelhantes (caso da Igreja de Cristo e Igreja Cidade Mundial de Minas Gerais), precisa comunicar de forma rápida e eficiente a mensagem daquele edifício para os transeuntes, que geralmente estão em alta velocidade em carros, motos e ônibus. A estratégia é parecida com a que Brown, Venturi e Izenour, em "Aprendendo com Las Vegas" (2003), chamavam de “galpão decorado”: edifícios em que a forma e estrutura estão separadas de sua comunicação principal.

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No caso dos Galpões ungidos, a logomarca, imagem do líder religioso e horários dos cultos dominam o espaço como um elemento na arquitetura, e consequentemente na paisagem da Avenida dos Andradas, ou de outros polos industriais que ofereçam construções da escala necessária, como o Parque Industrial de Contagem.

A persuasão comercial do ecletismo de beira de estrada provoca um impacto audacioso no marco vasto e complexo de uma nova paisagem de grandes espaços, altas velocidades e programas complexos. Estilos e signos fazem conexões entre muitos elementos, bem distantes e vistos depressa. A mensagem é rasteiramente comercial; o contexto é basicamente novo (Venturi et al., 2003, p.33).

A transição entre rua e templo é brusca, já que os galpões não foram planejados para abrigar tal função. A configuração do Galpão ungido complexifica o papel das portas em organizar o caráter oposto entre dentro e fora, santo e profano, pessoal e universal (Eliade, 1992). A possibilidade de reconhecer certa ordem divina em objetos e espaços do cotidiano, como galpões gigantescos, foi cunhada por Eliade (1992) como Hierofania. O espaço religioso é uma hierofania não homogênea, composto por rupturas, variações entre significados e poderes. “Mais ainda: para o homem religioso essa não-homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma oposição entre o espaço sagrado – o único que é real, que existe realmente – e todo o resto, a extensão informe, que o cerca”. A sacralidade é manufaturada pelos fiéis em meio a um território desconhecido e desocupado por meio dos rituais, agora potencializados pelos m² conquistados. Os cultos da Internacional chamam atenção pela força das filas enormes que deixam os bancos e marcham pelo salão em busca da cura.

Em outro ponto da Avenida Andradas, a Igreja Quadrangular do Floresta também se estabeleceu em um galpão, mas sobrepôs na estrutura regular de um depósito uma fachada de vidros azuis espelhados e um elemento destacado escuro com seus símbolos e logos em peças extrudadas em inox escovado. A intervenção denuncia o surgimento de outra tipologia relevante na produção arquitetônica pentecostal de caráter ostensivo e simbólico, que aqui chamarei de Palácio YHWH por basearem sua estabilidade no tamanho, luxo e referências hebraicas.

Galpão Galpão