A experiência espacial pentecostal é calcada menos no ambiente construído e mais na performance. Utilizo a definição de performance de Martins (2021), caracterizada como comportamentos estéticos marcados ou acentuados, que por meio da repetição são transmutados, transmitidos e transformados. São encenados no tempo e espaço, de forma simultânea e efêmera, passíveis de serem decodificados por aqueles indivíduos envolvidos no meio. Assim, o templo pentecostal é formado não pelas dimensões físicas, mas por situações sagradas que dependem apenas da união entre pessoas com a mesma crença (Freitas, et al, 2021). Essa percepção coletiva permite que uma denominação funcione em qualquer ambiente, como garagens, galpões, estacionamentos, transporte público e calçadas, auxiliando na capilaridade do pentecostalismo. Porém, o espaço tátil tradicional é reconhecido como especial para viver o encontro sobrenatural pela conexão possível entre o sagrado e o profano nos espaços religiosos. “Pois onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Bíblia, Mt, 18, 20).
O edifício adquire o caráter sagrado durante o tempo de um culto por meio da expressão corpórea dos presentes: no canto, dança, fala, choro, riso e comunhão, as pedras vivas edificam a casa espiritual (Bíblia, 1 Pe, 2, 5). E para isso, o corpo do cristão exige uma santificação diária para atingir a pureza necessária para receber Deus, como um vaso recebe o fluido. “Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós, a quem vós tem de Deus e que você não é seu?” (Bíblia, 1 Cor 6, 19).
O perigo maior, dado que está implícita a ideia da presença do transcendente no interior da pessoa, é da impossibilidade da recomposição das distinções humano e divino no fim do rito. Ao contrário dos rituais do candomblé, que insiste na familiarização do cavalo com o Orixá, no transe com o Espírito Santo não haverá um acréscimo de qualidade do humano no rito de incorporação, daí a imagem do vaso que é, momentaneamente, preenchido pelo Espírito Santo. (Mafra, 2011, p. 147-148)
A performance dos poderes do Espírito Santo representa uma capacidade elevada de acesso espiritual para aqueles capazes de estabelecer essa ponte. Algumas vezes, inclusive, é traço determinante para atingir posições privilegiadas no ritual, como se aqueles banhados pelo Espírito fossem membros de uma casta santa escolhida por Deus para ministrar seus ensinamentos, servindo como inspiração e guia para todo o corpo da igreja. Mafra (2011) afirma que a escolha do Pentecostalismo pela mediação do Espírito Santo é apenas uma alternativa entre outras escolhidas por outros tipos de Cristianismo, mas que oferece grande plasticidade à capacidade de comunicação, e consequentemente no seu discurso e prática.
A autora elenca três tipos de relação entre fiel e espírito encontradas no pentecostalismo brasileiro:
• O Espírito Santo se comunica com o interlocutor num contato pontual;
• O Espírito Santo se adensa ao corpo humano com a evolução da fé, e funciona como marcador social positivo, tornando o fiel referência para outros que almejam a salvação;
• O Espírito Santo se manifesta pelo transe, geralmente experienciado na coletividade do ritual. É uma atividade altamente desejada por reafirmar a aliança entre Deus e seu povo.
As experiências materializam-se em corpos que rodam, pulam, dançam, em bocas que cantam, gritam e murmuram línguas não terrenas, capazes de serem transmitidas ou compartilhadas, manifestação de fé ímpar no cenário cristão. Para Eliade (1992) esse rito busca atualizar um evento sagrado do passado mítico, e assim interrompe momentaneamente o tempo linear mundano. Para o corpo fiel, o tempo sagrado é circular, reversível e recuperável, restabelecido fora da linearidade pela linguagem da performance. Ao participar das celebrações, o cristão torna-se contemporâneo ao acontecimento mítico, e momentaneamente vive no tempo das histórias bíblicas, dividindo o pão, bebendo o sangue de Cristo ou recebendo os dons do Espírito Santo.
As produções de Leda Maria Martins e Mircea Eliade encontram-se na perspectiva do tempo como uma ontologia, expresso em certos contextos religiosos a despeito de ferramentas normativas de comunicação e registro como o discurso e a narrativa. No transe gerado pela experiência paranormal, o corpo que se movimenta no espaço estabelece “uma noção cósmica, ontológica, teórica e também rotineira da apreensão e da compreensão temporais” (Martins, 2021, p. 13). O transe não é linear.
Antes de uma cronologia, o tempo é uma ontologia, uma paisagem habitada pelas infâncias do corpo, uma andança anterior à progressão, um modo de predispor os seres no cosmos. O tempo inaugura os seres no próprio tempo e os inscreve em suas rítmicas cinesias. (Martins, 2021, p. 13)
O espaço sagrado fundamenta uma temporalidade distinta por sediar a performance, em que Espaço e Tempo são igualmente heterogêneos e descontínuos (Eliade, 1992). O tempo não linear só pode ser acessado no espaço em que o corpo em movimento ocupa.
Um tempo ontologicamente experimentado como movimentos contíguos e simultâneos de retroação, prospecção e reversibilidades, dilatação, expansão e contenção, contração e descontração, sincronia de instâncias compostas de presente, passado e futuro. (Martins, 2021, p. 42)
Variadas linhas temporais podem coexistir em ambientes pentecostais pois o cristianismo inovou a experiência temporal ao afirmar a historicidade de Jesus Cristo. O abandono da ideia de tempo sagrado cíclico já havia ocorrido no Judaísmo, que construiu um tempo sagrado irreversível com começo e fim. Mas, no caso cristão, pela apresentação sequencial da Bíblia dos eventos canônicos, a linha torna-se suscetível à santificação (Eliade, 1992). Assim, o tempo experienciado nos ritos cristãos não é mais atemporalmente mítico, mas algo que ocorreu no passado, e por isso a própria História revela-se como uma nova dimensão da presença de Deus.
Porém, o cristianismo experienciado em solo brasileiro é marcado pela ação e pensamentos dos povos submetidos à essa religião. O pentecostalismo, sendo destino comum de dissidentes do catolicismo e de matrizes africanas, é composto por referências diversas dos antecedentes desses fiéis. Esse trabalho procura questionar quais são os resultados espaciais da fricção entre várias realidades postas em oposição, mas frequentemente tensionadas até o ponto de mútua influência. É uma relação complexa, já que a incorporação de práticas alheias ao pentecostalismo é negada, vetada e condenada dentro das denominações. Em visitas a celebrações, testemunhei mensagens hostis à fiéis, líderes religiosos e divindades africanas e católicas, ao mesmo tempo em que me vi cercado por homens e mulheres pardos, pretos e brancos com experiência pregressa nesses meios. Por meio do reteté, os crentes pentecostais conseguem furar a malha temporal linear do cristianismo, possibilitando diálogos com outras ontologias e filosofias.
Se os dois autores concordam que a performance religiosa relaciona tempo e espaço num exercício corporal, Preciado (2023), em sua leitura foucaultiana, entende o espaço como determinante desse corpo usuário. Nas igrejas pentecostais, seus salões, garagens, galpões e palácios funcionam também como dispositivos de captura que codificam o fiel no espaço e determinam seu movimento, induzindo disciplinas e usos específicos do corpo. Não há apenas um tipo de espaço pentecostal codificador, pois a mesma diversidade de conexão com o sagrado também é encontrada na produção arquitetônica, que pretende atingir resultados diversos com a consolidação de elementos construídos. O ponto de partida é quase sempre um edifício profano, comum e ordinário, que adquire o caráter sagrado para o crente durante a aparição do Espírito Santo, o que determina como essenciais, para Rojas (2011) que quatro condições espaciais fossem estabelecidas para os templos pentecostais primitivos:
• Capacidade para todos os presentes;
• Objetivo comum de comungar com Jesus;
• União de todos os presentes no mesmo perímetro;
• Suficientemente discreto.
São variáveis subvertidas ou abandonadas de acordo com as condições específicas do ambiente histórico, social e territorial particular, proporcionando certas condições de singularidade na arquitetura observada. Freitas (2022) mapeou pelo menos três tipologias, aqui rebatizadas como Tabernáculo Fixo/Móvel, Galpão Ungido e Palácio YHWH. Também apresento outra estratégia espacial recente e extremamente popular no meio pentecostal, chamada Parede Preta.