LEI Nº 6902, DE 6 DE JULHO DE 1995
O Povo do Município de Belo Horizonte, por seus representantes, decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Fica dispensada a exigência de Alvará de Localização e Funcionamento para templos religiosos.
PLANO DIRETOR
Art. 49º Parágrafo único. Ficam isentas do pagamento da ODC as instituições religiosas, bem como os equipamentos de assistência social a elas vinculados.
A pentecosticidade política toma formas incontornáveis durante a Assembléia Constituinte de 1988, em que diversas lideranças se mobilizaram para indicar candidatos oficiais para garantir um número relevante de irmãos de fé na confecção do documento (Rocha, 2016). O discurso conservador foi mantido, mas agora rompia as barreiras sectárias para garantir poderes e mobilidade para as igrejas com diversos candidatos eleitos. A condenação do mundo continua, mas como motor de mudança política em vez da simples ausência. A Batalha Espiritual tão comum no imaginário carismático agora seria travada do Plano Piloto, e por consequência, de todos os outros espaços anteriormente negados à presença pentecostal. Durante culto em 2014, a pastora Ana Paula Valadão profetiza algo já em curso:
“Nós ousadamente declaramos: queremos, iremos, sim, para aquela área mais temida pelas trevas, para que a nossa invasão venha mudar a história. Nós estamos indo, Satanás, para a política brasileira. E as portas do inferno não prevalecerão sobre a igreja do Senhor”.
Sob a pretensão de pentecostalizar o mundo secular, os pentecostais deixaram-se secularizar, e nesse momento é possível visualizar a abertura da concepção do espaço sagrado para tendências e ferramentas oferecidas pelo mercado imobiliário, indústria da construção civil e do marketing de produtos, capazes de produzir uma nova variação de Tabernáculos.
Estabelecendo diálogos irremediáveis com a pós-modernidade fluida descrita por Harvey (2008), a produção cultural e formação de juízos estéticos dos ambientes pentecostais das últimas décadas derivam de um sistema organizado de produção e consumo mediado por novas divisões do trabalho e marketing sofisticado. O novo cenário econômico gerou frutos tão diversos quanto as doutrinas, mas com características em comum aqui reunidas pelo nome Tabernáculo móvel.
Freitas (2022) caracteriza essas construções como pequenos edifícios com finalidade original distinta do culto, como garagens, salas comerciais, cinemas, residências e tendas. É fruto da necessidade de um espaço rápido, barato e capaz de abrigar os fiéis num contexto urbano saturado. Diferente do Tabernáculo do deserto, que revelava o sagrado gradativamente em seu interior, nessa tipologia inexiste fronteira entre sagrado e profano.
A Igreja Pentecostal Deus é Amor, localizada na Rua Guaicurus, 337, ocupa uma construção de alvenaria neste endereço. Fundada em 3 de junho de 1962 pelo missionário David Martins Miranda, a IPDA nasceu a partir de uma revelação. Após orar durante a madrugada, David ouviu a voz de Deus, comissionando-o para a realização de uma grande obra (Araujo, 2016). Defendem o batismo por imersão ministrado em adultos que fazem a profissão pública de fé, o casamento exclusivo entre evangélicos, a expulsão de demônios e a manifestação dos dons espirituais. Assim como outras denominações da segunda fase pentecostal, tinha forte presença no rádio e ênfase teológica na cura divina, influenciada pelo movimento de cura propagado nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial. No Brasil, coincidiu com a acelerada urbanização nacional e o intenso êxodo rural para as regiões Sul e Sudeste nos anos 1950, tendo como principais protagonistas Igreja do Evangelho Quadrangular e Igreja Pentecostal o Brasil para Cristo, além da Igreja Pentecostal Deus é Amor (Aleixo, 2014).
No lote da Guaicurus, o espaço sagrado adere-se ao existente até os limites máximos disponíveis, aqui interrompidos pelos dois edifícios que o cercam. Por isso, apresenta profundidade superior à largura. É retangular, ausente de elementos ou espaços intermediários, abrigando um único ambiente. Nave central e bancos definem uma hierarquia espacial já comum aos cristianismos (Rojas, 2011) em que o púlpito é o centro absoluto do ambiente, realçado por iluminação artificial e nível elevado, já que é onde o pregador receberá a palavra.
O interior do templo se abstrai em paredes lisas sem imagens (tendência comum aos evangélicos desde Lutero), irrelevantes numa doutrina que ritualiza coletivamente seu espaço sagrado, em que o corpo ocupa a função de gerar iconografias (Rojas, 2011). Neste prédio, o portão é a única fonte de luz natural para o salão, já que as paredes laterais e posteriores não apresentam janelas. A fachada, mediadora entre a Igreja e o centro de Belo Horizonte, é o único elemento decorativo construído e adquire o papel de representar a identidade daquela congregação. A IPDA utiliza uma placa estampada com a logomarca da igreja sobre um céu azul, que paira sobre a entrada como uma releitura pentecostal do pronao grego ou do nártex romano, reduzido ao que uma placa pode mostrar.
A descrição também se aplica a maioria dos templos pentecostais da cidade. As pequenas variações, como forma redonda (Igreja Internacional da Graça de Deus, localizada no Edifício Acaiaca), no subsolo (Igreja Internacional Despertar da Fé, Rua Tupis, 431) ou presença de luz natural (Santuário Da Igreja Forte O Ninho Das Águias, Av. Augusto de Lima, 655), aparecem por especificidades pré existentes no terreno.
Outra constância nesses templos é a busca permanente pelo templo ideal para o exercício comunitário da fé (materializadas em diversas reformas e mudanças) e a produção de uma estética própria (Rojas, 2011). O ambiente ultrapassa sua função primária e torna-se extensão da imagem dos fiéis, em que todas as intervenções atingem também a imagem pessoal dos frequentadores. Por isso, a apropriação de signos estéticos de camadas sociais superiores é desejada, num esquema de trabalho tipicamente kitsch. Possuir um espaço para manifestar a expressão coletiva torna-se vital para denominações consolidadas, na medida em que sua personalização determina também o domínio, posse e possibilidade de aproximação a outros extratos sociais (Brites, 1991).
Se a tradição antropológica ligou a questão da alteridade (ou da identidade) à do espaço, é porque os processos de simbolização colocados em prática pelos grupos sociais deviam compreender e controlar o espaço para se compreenderem e se organizarem a si mesmos. (Augé, 1994, p.158)
Outrora condenado pelo cânone modernista europeu, aqui o ornamento é basilar na construção da ficção do empreendimento pentecostal. Os símbolos são aplicados ao edifício e tornam-se essenciais para comercializar a superfície arquitetônica. A dinâmica não nasce de tais igrejas, mas foi importada, ou comprada, ou reproduzida, da mercantilização espacial ofertada pelo mercado imobiliário.
Como narrado por Harvey (2008), a mobilização da moda em mercados de massa, em detrimento aos mercados de elite, acelerou o ritmo do consumo de qualquer coisa produtificável para um público imenso: Planeta Prêt-à-porter. A velocidade da tomada de decisões privada e pública aumentou, num cenário potencializado pela comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte, causando uma “compressão do espaço-tempo”.
Cançado (2002) classifica a arquitetura vendida por esse mercado como uma presença desprezada pelo pensamento intelectual formal. O relevante para esse tipo de construção é a capacidade de gerar lucro, então o edifício torna-se um dispositivo de veiculação publicitária na cidade, como produto ou como superfície para display, placas e mensagens: Arquitetura Prêt-à-porter.
A arquitetura incorporada por grande parte das denominações pentecostais é determinada pela mesma lógica da cultura de massa. Essa questão ganha novos contornos pela velocidade proporcionada pela virtualização da informação, em que tanto as trocas monetárias quanto o fluxo de informações e estímulos ao cérebro consumidor tornam-se ainda mais abstratos e potentes. Os produtos dessa indústria pós-fordista, geralmente baseados em modas, nostalgia, pastiche e kitsch, funcionam como fonte de capital simbólico para classes e meios, como por exemplo igrejas, que buscam um produto cultural como marca de sua identidade: Prêt-à-porter Church.
A disponibilização em massa de elementos construtivos demandava estandardização da produção e um marketing especial de ampla divulgação. A padronização de peças, fundamental para a expansão kitsch pentecostal aparece nos esforços modernos do começo do século XX. Experimentações em busca de uma objetividade arquitetônica, baseada na eficiência e modulação da construção foram objeto de pesquisa de Le Corbusier (Cançado, 2002). Em 1915, o arquiteto francês apresentou a Dom-Ino, série de casas montáveis em peças pré-fabricadas acopláveis a uma fundação. É apenas um dos exemplos de tendências comuns ao modernismo europeu de reduzir o padrão habitacional ao mínimo necessário, politicamente motivado pela escassez do pós guerra e das tecnologias da industrialização.
A estandardização foi absorvida com simpatia pelas políticas do Estado Novo de Vargas, que via na industrialização caminho para a tão sonhada modernidade, que já assombrava o território desde os esforços republicanos (Starling, 2002). Artigas, em 1951, acusa os experimentos corbusianos como ferramentas a serviço dos EUA. Por trás do rigor científico, a normatização da produção possibilitaria a penetração de produtos industrializados estrangeiros no país. Cada parafuso, viga ou azulejo viriam embutidos com a ideologia imperialista. Mais tarde, a Ditadura Militar facilitou a adesão nacional a qualquer projeto liberal e assim, o “milagre econômico” aliado ao aceleramento da urbanização e industrialização geraram uma nova classe média ávida por objetos de consumo (Cançado, 2002). Essa demanda será atendida de bom grado por uma cena de construção dominada por construtoras, engenheiros, marketeiros e administradores em que os arquitetos não têm quase nenhum poder de decisão.
A produção arquitetônica pentecostal se estabeleceu menos como um estilo e mais como uma customização personalizada dos espaços de acordo com a doutrina religiosa, influências da indústria construtiva e recursos disponíveis. Munidos de bloquinhos industrializados e a missão de crescer e multiplicar, os templos frequentemente reinterpretam referências consideradas intelectualmente superiores, que variam de tendências do mercado construtivo até civilizações antigas (geralmente Roma e Israel), com elementos de fácil consumo e identificação. Como toda tradução, o referencial chegará no fim do processo distorcido e alterado, nesse caso pela falta da mesma técnica e conhecimento do original.
No caso da Igreja Reino dos Céus, o imaginário hebraico será fundamental para sacramentar a solidez da igreja em uma espécie de mito fundador, que legitime seu propósito teológico. Para isso, são utilizados menorás, estrelas de davi e talits deslocados de seu significado judaico original. O impacto das imagens importadas não é diretamente assimilado, mas catalisa com sua presença o surgimento de ideais potencialmente presentes (Strauss, 2008). Os frequentadores da denominação não objetivam tornar-se judeus, mas estabelecer inédita relação com esses elementos.
A Igreja Reino dos Céus é um conglomerado religioso que possui templos por toda Belo Horizonte, a emissora Milagres na TV, produção de livros e um parque temático localizado na RMBH chamado Monte Maanaim. É provavelmente a vertente pentecostal da cidade que melhor atrelou sua identidade com referências hebraicas.
No ano de 1978 uma forte luz vinda do Monte Maanaim encobriu o carro do jovem missionário que seguia no seu caminho de evangelização, e socorro espiritual, aos que sofrem. Começava ali os três anos de preparação para um apostolado vitorioso que seria marcado por grandes sinais. Em 28 de janeiro de 1981 iniciou-se a história do apostolado do Missionário Adelino de Carvalho que impactaria multidões de pessoas no Brasil e por todo o mundo.
A denominação estabeleceu como estratégia expansionista o trabalho de panfletagem, no qual são espalhados pela cidade papéis com discursos de possibilidade libertação de drogas, doenças, desemprego, relacionamentos destruídos, sofrimento, inveja, bruxarias, feiticeiros, demônios, pontos riscados e amarrações. Como contraponto a um mundo hostil, a igreja aparece como possibilidade de transformação, ofertando sessões sincréticas de:
✞ Atendimento gratuito com missionários exorcistas;
✞ Corrente forte da devolução;
✞ Poderosa corrente do Anjo Miguel, o anjo da corrente;
✞ Poderoso Vale do Sal: Roda de Sal e Fogo;
✞ O Óleo da Cura Divina.
✞ Lavagem das mãos nas bacias sagradas da purificação com o Sangue do Cordeiro;
Os nomes das denominações, templos e ritos (que geralmente evocam imagens do pentateuco ou de pentecostes) contribuem para criar atmosfera, sensação e valor imaginários para os fiéis. Embaçam a vida cotidiana com a promessa de uma utopia possível, evocando lugares e realidades distantes, porém desejáveis. A manipulação do tempo ou das referências geográficas são possibilitadas pelo exercício utópico, inclusive situando o objeto em um tempo imaginado ou irreal (Cançado, 2002). A Igreja Reino dos Céus abandona identidades culturais autóctones, criando ritos e imagens exagerados que amalgamam o falso e o verdadeiro (Brites, 1991). É uma estratégia bem sucedida de construir um ambiente hermeticamente ungido, permeado de elementos contrastantes com a realidade brasileira, mas sem abandonar referências aos desafios típicos da sociedade em que está inserido.
A denominação é um exemplo de como a informalidade e transitoriedade dos Tabernáculos móveis proporcionam espaço para criação e improvisação ritualística dos presentes, que contribuem para a performance do fogo divino com sua bagagem particular. É nesse tipo de igreja que é possível encontrar narrativas e referências inesperadas que penetram o tecido pentecostal no momento do rito. Desde as primeiras experiências de William Joseph Seymour com o batismo do Espírito Santo em sua congregação preta em Los Angeles, até os cultos de qualquer templo da Universal, a presença de outros saberes, tanto nos corpos quanto nos ritos, pode ser apontada.
A sobrevivência de ritos marginalizados em religiões dominantes é comum na história brasileira, já que as práticas intelectuais dos povos não brancos sobreviveram a um processo agressivo de apagamento e demonização pela inscrição sutil e resistente em meio a cultura imposta desde o início do projeto colonial europeu (Martins, 2021). O contato sediado no Brasil colônia entre os distintos ethos étnicos formatou uma nova cultura nacional num processo de mútua influência, uma vez que os arcabouços europeus, africanos e indígenas trombaram-se numa fricção suficientemente violenta e significativa para criar rusgas e fissuras em todos os envolvidos. Pelo desequilíbrio na ordem de poderes entre os grupos, os negros e indígenas precisaram de artifícios e instrumentos inimagináveis para garantir a sobrevivência de uma gama de conhecimentos próprios, como uma reterritorialização e reimplantação dos princípios basilares dos povos nesse
trânsito sistêmico e epistêmico que emerge dos processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e se entrecruzam — nem sempre amistosamente — práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim. (Martins, 2021, p. 35)